Carta de Curitiba

jun 1, 2015 | 0 Comentários

Incorporada aos Princípios do Partido Pirata, conforme deliberação da I Assembleia Nacional Pirata, realizada entre 23 e 25 de maio de 2014, em Curitiba

As cláusulas pétreas do Estatuto Pirata representam os pilares fundadores de nossa atuação e de norteamento de nossas posturas. São ao mesmo tempo indicadores dos rumos para seguir e advertência quanto aos erros que devem ser evitados a todo custo. Devem figurar alto na documentação do partido, sobretudo, para balizar o discurso e a ação de piratas em todo o país, de acordo com princípios inegociáveis, definidores da própria identidade pirata.

Em seu art. 3º, o Estatuto arrola como cláusulas pétreas: (I) a defesa dos direitos humanos, (II) a defesa do direito à privacidade, (III) a defesa ao acesso livre à informação, (IV) a defesa do acesso e compartilhamento livres de cultura e conhecimento, (V) a transparência pública, (VI) a democracia plena, (VII) o Estado Laico, (VIII) a liberdade de expressão e (IX) a colaboratividade.

O debate travado na Assembleia de Fundação, em Recife, que definiu esse rol inicial, limitou-se a arrolar alguns princípios elementares da atuação específica do partido no âmbito da luta por garantias de aprofundamento democrático, transparência e algumas liberdades fundamentais, tais como: privacidade, expressão e acesso à informação e ao conhecimento. A seletividade desses princípios se explicava pelo esforço em tentar destacar aquilo que diferenciava os piratas de outras agremiações partidárias. Outros princípios igualmente determinantes foram, contudo, deixados de lado e a experiência do ativismo pirata nos anos seguintes deixou cada vez mais evidente a necessidade de sanar essas lacunas. Hoje a nossa preocupação já não é unicamente de diferenciação externa e de ocupação de nichos temáticos, sobretudo o de expressar, sem margem para ambiguidades, nosso compromisso com os princípios essenciais de uma política democrática pautada pela proteção de minorias, pela resistência à opressão, pelo internacionalismo, que é definidor da plataforma pirata, pelo compromisso inabalável com os movimentos sociais, que estão na base do movimento pirata em todo o mundo. Em consonância com os princípios já estabelecidos, mas expandindo seu rol para contemplar outros que definem o próprio cerne do que é atuar politicamente como pirata.

A expansão do rol de cláusulas pétreas no Estatuto Pirata foi uma das questões mais importantes dentre as que foram tratadas no Encontro Nacional, senão a mais importante. A discussão sobre o conteúdo dessa expansão já vem sendo feita e amadurecida há muitos meses em diversos coletivos regionais e nos fóruns online piratas (chat e grupo no Facebook, Plebiscito Pirata no site, loomio, piratenpad, entre outros). Em determinado ponto do debate, chegou a ser feita uma enquete online que acabou por demonstrar algo que já se prenunciava nas discussões travadas, a saber, que existe uma convergência de posições em torno de um rol específico de tópicos que devem figurar entre as cláusulas pétreas.

Listamos aqui, portanto, as cláusulas pétreas propostas como expressão desse compromisso pirata, na ordem dos apoios recebidos nas discussões prévias travadas (a serem adicionadas àquelas já existentes, intocáveis, como pétreas que são) :

  1. adicionar à cláusula “defesa dos direitos humanos” a expressão “e das liberdades civis”;
  2. a igualdade de gênero, em todas as suas expressões;
  3. o combate a todas as formas de discriminação;
  4. o combate a todas as formas de autoritarismo;
  5. a defesa do direito inalienável de resistir à opressão;
  6. o internacionalismo;
  7. a defesa do ativismo hacker;
  8. o gozo pleno dos direitos inerentes à cidadania, inclusive políticos, ativos e passivos, independente da nacionalidade;
  9. a plena autodeterminação individual (liberdade de escolha em todas as decisões);
  10. a neutralidade da rede.

Da mesma forma como o direito à privacidade e à liberdade de expressão são direitos humanos, mas os consideramos importantes a ponto de expressá-los distintamente nas cláusulas pétreas já existentes, com mérito e formulação próprios, também essa outra lista de garantias precisa ser expressa, para deixar claro que somos um movimento político na vanguarda do discurso dos direitos e sem deixar margem de confusão para gaiatos que tentem se aproximar do movimento tendo em vista apenas o uso da legenda como plataforma. Num documento constitutivo de um movimento político de vanguarda, ou fica expressa a dimensão inegociável da proteção de minorias e da promoção de direitos e garantias em sua plataforma ou então todo o restante do estatuto deixa de ter sentido e relevância.

O art. 5o. da Constituição Federal (que arrola os conteúdos específicos das garantias fundamentais e sua própria razão de ser) tem 77 incisos e de forma alguma são suficientes. Toda a pauta reivindicatória de nossa curta vida republicana tem sido em torno da expansão desses 77 incisos. Como o rol de garantias fundamentais, irrevogáveis, em um documento constitucional, as cláusulas pétreas existem justamente para que não tenhamos de voltar sempre de novo à discussão dos elementos indiscutíveis, irrefutáveis, basilares, fundantes da ordem democrática.

Por mais que busquemos, como movimento político, suplantar as limitações territoriais e ideológicas do estado moderno, é incontornável reconhecer seu papel na promoção da igualdade. Não basta desejar do fundo do coração e meramente expressar numa fórmula genérica abrangente esse desejo de que a igualdade exista para que ela, por si só e magicamente, surja diante de nós a nos absolver de toda a injustiça praticada histórica e cotidianamente contra todas as minorias.

Os grupos políticos que concebem sua defesa das minorias professando o apoio à fórmula genérica da “defesa dos direitos humanos” parecem ter esquecido de embarcar no bonde da história lá no séc. XVIII ou então devem mesmo acobertar por baixo da fórmula genérica uma suspeição de fundo contra a proteção de minorias, como se consistissem em privilégios ou afrontas a uma pretensa maioria abstrata, que, em geral, não passa de uma projeção do status quo.

Já existe na pauta de expansão de direitos no Brasil um referencial para o mínimo programático que o Estado está disposto a reconhecer e promover. Trata-se dos Programas Nacionais de Direitos Humanos, que se converteram, no curso da dinâmica de coalizões do sistema político nacional, em moeda preferencial de troca oferecida pelo Executivo a bancadas reacionárias na negociação de votos no Congresso, assim como recuos em sua implementação são oferecidos como garantias de “moderação” para angariar o apoio eleitoral de lideranças religiosas. Isso que se tornou uma prática renitente do Executivo Federal deve servir como advertência a todos os que acreditam que o Partido Pirata deve fazer concessões em matérias que digam respeito a seus princípios fundamentais com vistas à obtenção de um maior favorecimento do eleitorado conservador e religiosamente orientado, advertência essa que deve mostrar que já existe uma força política majoritária no país que opera nesse sentido. Se a nossa ideia de pragmatismo e viabilidade eleitoral é a seletividade na aplicação ou na validade dos princípios de direitos humanos, já existem suficientes partidos fazendo esse papel e não existe necessidade de que surja mais um.

Portanto, em lugar de nos situarmos no campo político daqueles que procuram defender uma plataforma aquém daquilo que já está assegurado nos PNDH’s, seria importantíssimo que antes de mais nada nos inteirássemos daquilo que o último PNDH já estipula, para não corrermos o risco de nos apresentando como vanguarda, acabarmos sendo mais acanhados do que o próprio Estado brasileiro o é na defesa dos direitos fundamentais já reconhecidos:

http://www.dhnet.org.br/dados/pp/a_pdf/pndh3_programa_nacional_direitos_humanos_3.pdf

Uma vez percebido o patamar mínimo daquilo que já é reconhecido e assegurado, cabe aos piratas se projetarem para muito além do que o PNDH já estipula. Devemos nos alinhar o mais amplamente possível com as demandas mais avançadas dos movimentos sociais e de defesa de grupos minoritários, sob pena de eliminarmos qualquer chance de obter relevância no cenário político contemporâneo.

Mais do que isso, devemos explicitar que a defesa inegociável de uma pauta ampla e crescente de direitos fundamentais deve figurar tanto em nosso programa quanto em nosso estatuto, na própria definição de nossas premissas e das estruturas que buscamos estabelecer para realizá-las, portanto, tanto como programa quanto como princípio. A parte do estatuto que trata das cláusulas pétreas deve se constituir e se fazer reconhecer como a carta de princípios do partido, assim como uma constituição, que é ao mesmo tempo rol de princípios, direitos e vedações, como também é documento de configuração institucional. É isso que define o constitucionalismo moderno e é nisso que a forma estatutária das organizações políticas se baseia.

Mas muito mais que enunciado de princípios, as cláusulas pétreas devem operar também como parte de um mecanismo claro de dissuasão da entrada de elementos discriminatórios nas fileiras do partido e devem servir tanto para orientar a atuação dos filiados, quanto assegurar que não haja atuação destoante da defesa dos direitos e do combate à discriminação. Elas correspondem precisamente àquilo que é basilar e, até o presente, existem elementos basilares que são reconhecidos mundialmente como constitutivos do ideário, da plataforma e da identidade pirata e que ainda não entraram no rol das cláusulas pétreas formalmente reconhecidas como tal pelo partido no Brasil.

O que esta lista ampliada aqui apresentada procura listar são elementos básicos da defesa de direitos, que foram identificados por piratas atuantes e ativistas como uma carência. Não podemos nos dar ao luxo de nos aferrar a um fetichismo com o estatuto já existente. Esse estatuto é reconhecidamente precário e será reformado em diversos pontos e uma das principais reformas que devemos fazer é no artigo que trata das cláusulas pétreas. Nosso estatuto foi feito para ser reformado e nosso confronto com um campo político brasileiro que ainda é confuso em termos da defesa de direitos que são inegociáveis politicamente nos mostrou que é inadiável definir essas balizas.

Esta proposta abarca cerca de 10 princípios fundamentais. Acreditamos que esses representam tópicos integralmente pertinentes à dimensão programática da atuação pirata, mas que merecem ser também revestidos de uma inviolabilidade que a declaração como cláusulas pétreas assegura. Referem-se todos à defesa de direitos fundamentais, ao compromisso com o combate a todas as formas de discriminação e opressão, à defesa da igualdade em todos os aspectos da vida política e ao internacionalismo como crucial elemento definidor de nossa identidade e de nosso ideário e nenhum desses princípios pode ou deve ser condicionado à conjuntura política do momento ou aos compromissos incontornáveis na atuação do partido. Nenhum deles excedente, nenhum deles supérfluo, nenhum deles redundante, todos expressando clara e inequivocamente pilares da concepção pirata de política e de ativismo. Trata-se de elementos fundantes e fundamentais, todos e cada um deles: liberdades, igualdade, internacionalismo, antidiscriminação, direito de resistência, autodeterminação, antiautoritarismo.

Muitos dos militantes que ingressaram no movimento pirata fizeram-no imbuídos da convicção de que, na propalada reforma do estatuto, todos esses fundamentos seriam reconhecidos e proclamados. Eles são reconhecidos em nossa atuação militante fora da organização partidária e precisam ser reconhecidos aqui também. Se esses temas serão negociáveis, se não são urgentes e se não são importantes para o partido, é preciso que isso fique claro já, pois muitos ativistas de movimentos sociais que estão próximos ao partido e até mesmo de dentro dele precisam saber se aqui vai ser a plataforma para continuar a luta por esses princípios ou se devem levar sua atuação para outras arenas, sob pena de se verem vinculados a uma organização que, como a maioria das outras agremiações partidárias, se pauta pela ambiguidade casuísta com a pauta dos direitos fundamentais.

A luta por esses princípios é muito mais importante que o partido. Se pudermos extrair força deles, tanto melhor. Mas procurar subjugá-los às decisões programáticas, é mais do que um erro conceitual, é também um erro tático. E vamos perder uma chance preciosa de nos perfilar como vanguarda democrática e vamos perder aliados valiosíssimos (como, de fato, vimos perdendo a cada vez que esses princípios são questionados por gaiatos e trolls que circulam pelos espaços de discussão do partido e como também perderam os partidos piratas europeus antes de se darem conta de que o que é inegociável precisa sim ficar escrito na pedra à vista de todos.

Esses são princípios definidores da nossa inserção no espectro político e, se não nos definirmos como partido de direitos, como partido aliado dos movimentos sociais, como expressão mesma dessas reivindicações, então sequer há razão para entrarmos nesse espectro. São mais que demandas por políticas públicas; são demandas por uma configuração de Estado e de sociedade que cristalize as liberdades e a igualdade como forma mesma da política democrática e das instituições republicanas.

Direitos humanos e liberdades civis são duas dimensões da mesma garantia. Para que os direitos humanos façam sentido em um regime político, eles precisam das liberdades civis como contraparte. Ou bem se altera a formulação da cláusula pétrea já existente ou então se insere mais uma. Como está, contemplando apenas uma fórmula genérica de “direitos humanos”, mas sem explicitar o mecanismo da proteção das liberdades civis como instância garantidora desses mesmos direitos, é claramente insuficiente.

O discurso dos direitos humanos é apenas isso, um discurso, que cristalizou uma pauta histórica de demandas de direitos típica do período da Guerra Fria. Muitos dos que vivemos nossa socialização política nesse período, acostumamo-nos a ouvir reiterações retóricas e simbólicas dessa fórmula genérica mesmo que partissem de posições completamente antagônicas no espectro político e ideológico. Qualquer um pode se dizer favorável aos direitos humanos e todos diziam sê-lo – justamente porque isso não implicava compromisso com qualquer conteúdo político efetivo com qualquer mecanismo eficaz de implementação ou com a defesa de qualquer grupo alijado específico.

A pauta reivindicatória da qual o próprio movimento pirata é resultado é tributária de uma crítica incisiva a essa ambiguidade e a essa insuficiência. Essa pauta já se ampliou enormemente nas últimas décadas e o movimento pirata é um dos principais herdeiros dessa transformação da militância política. Como decorrência dos compromissos com a defesa de grupos minoritários e perseguidos que se encontra na própria gênese do movimento, é mais do que necessário expandir o rol de direitos em nossas garantias fundacionais, naquilo que define nossa própria razão de ser. Somos um partido de proteção das liberdades fundamentais e essas liberdades precisam ser expressas como liberdades invioláveis que são. Nada de subentendidos, nada de ambiguidades, nada de compromissos.

A formulação “direitos humanos” é a versão mais incorpórea, mais insossa, mais despolitizada e mais estática da defesa das garantias fundamentais. Se esperarmos que basta o fato de sermos novos na cena política e de afirmarmos ter boa vontade que teremos assim uma varinha de condão, ou ainda, se esperarmos que basta falar em “direitos humanos” para estarmos “do lado do bem” e que poderemos sempre dizer que tudo está contido ali nessa fórmula genérica, não conseguiremos nos diferenciar em nada daquilo que é feito por meio desse discurso genérico dos direitos humanos por organizações e sistemas autoritários mundo afora, esses que dizem defender os direitos humanos, mas com formulações feitas sob medida para cada ocasião.

Para ilustrar esse problema, existe a extensa discussão a respeito de como notórios violadores sistemáticos dos direitos fundamentais, tais como China, Singapura e Malásia, utilizaram a expressão genérica dos “direitos humanos” para justificar sua recusa em aceitar o rol de direitos universais, alegando que haveria uma forma local de interpretar os direitos humanos segundo os “valores asiáticos” ou a “perspectiva asiática” (ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Valores_asi%C3%A1ticos). A ideia de “direitos humanos asiáticos” ou de “democracia oriental” se tornou sinônimo de autoritarismo e de regimes jurídicos brutalmente repressivos e alheios ao escrutínio internacional.

Outros exemplos que ilustram perfeitamente isso, são figuras reconhecidas como as mais execráveis do populismo reacionário brasileiro, que utilizam a própria expressão genérica dos “direitos humanos” para atestar que os defendem ao mesmo tempo que os atacam, deslegitimam e desestruturam. Um desses exemplos, é Marisa Lobo, psicóloga cristã, guru de Marco Feliciano e autora do projeto de “cura gay”, que afirma expressamente que, ao promover a homofobia e ao se arvorar no discurso religioso para fazer isso, na verdade “atua na defesa dos direitos humanos”: http://psicologiacrista.com.br/marisa-lobo/. Também a Opus Dei afirma “defender os direitos humanos”: http://pt.josemariaescriva.info/…/lutando-pelos…. A UDR (União Democrática Ruralista) também “defende os direitos constitucionais inalienáveis”: http://www.udr.org.br/objetivos.htm. A TFP (Tradição, Família e Propriedade) também “defende direitos humanos”: http://www.pliniocorreadeoliveira.info/Gesta_020209.htm. Vladimir Putin também: http://www.dn.pt/especiais/interior.aspx?content_id=98758….

Só de explicitarmos minimamente a perspectiva insofismável que defendemos e dizer, por exemplo, que defendemos as liberdades civis e a não discriminação, estamos indo muito além do populismo dos direitos humanos genéricos que não passa de uma faceta do autoritarismo.

Ao defender as liberdades civis, estamos explicitando que defendemos que o agente legitimado para reivindicar e realizar seus direitos é o próprio titular deles. Sem as liberdades civis, ficamos à mercê do discurso que apregoa que o regime político ou entidades coletivas são perfeitamente capazes de pleitear e gozar dos seus direitos por você.

É importante arrolar explicitamente todas as formas de discriminação que reconhecemos e combatemos, assim como especificar que defendemos a igualdade de gênero para além daquela baseada no binarismo que estipula como humanos apenas homem e mulher.

A não-discriminação e a ação antidiscriminatória são pilares constitutivos de toda e qualquer atuação sob a bandeira pirata e, como tais, devemos proclamá-las, proscrevendo e combatendo por todos os meios lídimos qualquer óbice ao reconhecimento da igualdade intrínseca entre todas as pessoas, seja qual for a expressão que venha a assumir, em termos de cor, raça, etnia, gênero, identidade de gênero, classe ou casta, origem, nacionalidade, religião, registro linguístico, opinião, estado civil, idade, capacidade, ocupação, habilidade ou qualquer outro critério que possa vir a ser mobilizado para justificar a discriminação e que deverá ser devida e explicitamente denunciado como tal.

Defender a não discriminação é outra ampliação fundamental, pois deixa evidente que não admitimos nem a seletividade dos direitos e nem o escalonamento na sua aplicação, que não são as autoridades que devem decidir quando a igualdade é aplicável ou conveniente, como quando ouvíamos a velha esquerda institucional falando que defendia, sim, os direitos humanos, mas que havia outras prioridades e que era mais importante atender as demandas da “maioria”, que as minorias poderiam e deveriam suportar estoicamente a discriminação e ter paciência, pois quando todos tivessem pão, ninguém mais precisaria afinal falar em direitos.

Com relação à matriz internacionalista, fundante de nosso movimento pirata, cabe ressaltar a defesa inquestionável da cidadania universal, ativa e passiva, a titularidade plena de direitos e garantias de qualquer natureza e expressão, extensiva a todas as pessoas, independente de seu estatuto pessoal, civil e nacional, e a equiparação irrestrita entre nacionais e estrangeiros em todos os domínios da vida. Direitos plenos para não nacionais são indispensáveis, provavelmente o mais pirata desses princípios todos que procuramos realçar e algo que deve nos moldar como partido.

Trata-se de algo crucial para o ideário pirata, mas não se trata de novidade. Existem já inúmeros exemplos de instâncias em que estrangeiros residentes gozam de direitos políticos. Nosso esforço é para tornar a questão tão naturalizada em um cenário político tão marcado pelo jingoísmo e pelo chauvinismo (mas que não se reconhece como tal) como o brasileiro. Na União Europeia, por exemplo, há diversos países nos quais qualquer cidadão de qualquer outro país-membro da União pode votar em eleições locais. No seio da Commonwealth britânica, ocorre o mesmo. A lista de casos individuais é enorme e, para ficar só na nossa vizinhança: em Buenos Aires, estrangeiros residentes podem votar se são oriundos de países que mantém reciprocidade; no Uruguai, qualquer estrangeiro com mais de 15 anos de residência pode votar em qualquer nível, sem precisar se naturalizar; no Chile, basta residir por 5 anos pra poder votar; na Colômbia, residentes por 5 anos votam nas eleições locais; na Venezuela, residência de 10 anos para votar nas eleições locais. Isso tudo para não mencionar o caso emblemático do Equador, que reconheceu como princípio constitucional a cidadania universal, abolindo o sistema de vistos e se tornando o país latino-americano que recebeu e abriga o maior número absoluto de refugiados ao longo dos últimos anos e reconhece a todos os residentes direitos iguais e plenos. Na maior parte do tempo ao longo da história norte-americana, os direitos políticos eram estendidos aos imigrantes e foi somente muito recentemente que esses direitos começaram a ser suprimidos. E mesmo hoje, há um sem número de municipalidades e alguns estados onde já voltaram a ser estendidos esses direitos e propostas nesse sentido já foram apresentadas e estão sendo discutidas em 40 dos estados americanos. Até mesmo no Brasil, cidadãos portugueses não precisam se naturalizar para votar e serem votados e, em Portugal, há uma lista enorme de países a cujos cidadãos são concedidos direitos políticos plenos. Aqui se pode consultar uma lista muito instrutiva sobre a situação atual da extensão de direitos políticos a estrangeiros residentes: https://en.wikipedia.org/wiki/Right_of_foreigners_to_vote.

Obstáculos ao pleno gozo de direitos políticos por estrangeiros residentes foram criados durante o longo século dos nacionalismos e são esses obstáculos que queremos superar com nossos princípios, nossas ideias e propostas e nossa atuação. Não há razão alguma para naturalizar aquilo que foram claras restrições históricas de direitos contra grupos imigrantes e refugiados. Devemos enfrentar abertamente o desafio pirata de levar isso ainda mais longe do que já foi alcançado e estabelecido nas tantas legislações que foram listadas acima e que já asseguram esses direitos em vários contextos e diante das quais o caso brasileiro é tanto mais excludente.

Se, porventura, um atavismo nacionalista nos advertir que devemos nos preocupar com a possibilidade de manipulação de eleições por estrangeiros, devemos perguntar por que exatamente um estrangeiro teria mais interesse em manipular eleições do que um nacional e deveríamos encaminhar a discussão para o tópico correspondente ao canal que utilizariam tanto nacionais como estrangeiros que desejassem manipular eleições: o financiamento de campanhas. Se nosso foco é impedir esse tipo de influência manipuladora, precisamos barrar a circulação de dinheiro, não a circulação de pessoas. Se um país quisesse influenciar as eleições de outro, não precisaria fazer uma transferência populacional, bastaria comprar alguns candidatos nacionais mesmo. Sairia muito mais barato do que pagar uma passagem de avião para cada eleitor.

Advertências como essa reproduzem um certo tipo de preconceito com relação a estrangeiros que se tornou pervasivo e vergonhosamente aceitável no cenário político brasileiro, de que não se pode confiar na adesão deles aos valores e às regras locais. Se não existe uma carga de xenofobia nessa suspeita, por que então considerar que um estrangeiro seria mais subornável que um nacional? Aliás, pelo preço do suborno de um estrangeiro (incluindo passagens e estadia), é muito provável que fosse possível subornar uns 30 ou 50 nacionais. Além de xenofóbica, a ideia de que não se pode confiar em um eleitor para escolher o melhor candidato para seus próprios interesses como residente da comunidade política é profundamente antidemocrática.

Se a preocupação dos nacionalistas que criticam a cidadania universal é que os Estados que limitam os direitos políticos sejam as potenciais vítimas de possíveis manipulações, estaríamos reproduzindo um atavismo que o pensamento nacionalista inculcou nas pessoas e que nós, como piratas, temos a obrigação de combater. Os Estados que limitam direitos não são as vítimas, não o fazem para se proteger ou defender, mas para agredir, cercear e limitar a liberdade daqueles que vivem sob sua autoridade. E, na realidade, nunca é o direito político dos famigerados imperialistas imigrantes americanos ou europeus que são limitados por esses esquemas cerceadores, mas sim os direitos políticos do boliviano, do haitiano, do nigeriano, do chinês e de tantas outras nacionalidades que são tanto mais exploradas economicamente porque são mantidas em completo alijamento político.

Tampouco convém aceitar que a xenofobia se esconda por trás de ideias pseudopolitizadas como a defesa de “identidades culturais” contra ingerências externas. Em um raciocínio desses, o nacionalismo se revela ainda mais virulento, pois postula um processo de alijamento ainda mais completo, no qual as pessoas têm tolhida sua voz e sua possibilidade de influir no processo de conformação dessa sua própria “identidade”, que lhes é imposta ou delas exigida. Isso corresponde à própria definição do nacionalismo antidemocrático, xenofóbico e, no limite, etnocida, como mostram abundantes casos históricos em que o nacionalismo não foi contrastado pela resistência democrática, antinacionalista e internacionalista.

Reconhecemos e proclamamos que só será democrático o sistema que permitir que os que são governados possam escolher os governantes e possam também governar. E, se vamos falar daquilo que é visto e aceito como natural, devemos promover tanto mais a naturalização da ideia democrática, que, além de conceitualmente mais sólida, é muito mais antiga do que a ideia nacional.

Não se trata de uma pauta teórica, mas sim de uma pauta candente das forças políticas mais avançadas no espectro democrático, em todos os continentes, e parte de uma prática intensa de aprimoramento do funcionamento dos regimes representativos e de exercício da democracia direta. Nem tampouco está na alçada do direito internacional, nem muito menos no campo dos assim chamados “direitos difusos”. A ideia de cidadania universal é decorrência direta do pensamento constitucional democrático moderno, tributário imediato das revoluções do séc. XVIII. O nacionalismo antidemocrático do final do séc. XIX e início do séc. XX é que foi uma reação a isso, e os governos burocráticos do pós-guerra acharam por bem manter o status quo nacionalista, promover a livre circulação das mercadorias e capitais e tributar fortemente (financeira, política e humanitariamente) a circulação de pessoas.

Coloquemo-nos, afinal, na posição de estrangeiro, na posição em que os piratas mundo afora costumam pedir para que eleitores e apoiadores se coloquem para imaginar a situação absurda e sufocante sob a qual vivem milhões de estrangeiros residentes em outros países e injustamente alijados de comunidades políticas que se acreditam modernas, mas que promovem privilégios nacionalistas típicos do que de pior a política do séc. XX produziu. Ao nos colocar nessa perspectiva, procuremos imaginar o que é viver na condição de estrangeiro politicamente cerceado, pagar todos os impostos sem poder decidir o que será feito com qualquer um deles, ter de mandar seus filhos para lutar em guerras sobre as quais não teve qualquer direito de opinar, sentir constantemente o temor de ser preso até uma deportação sempre adiada porque afinal sua voz jamais teria qualquer peso político para fazer com que alguém com poder decisório se importassem com seu destino.

Nacionalistas provincianos preferem imaginar que o cerceamento de direitos políticos sob pretextos nacionalistas os protege de hipotéticas multidões de milionários sauditas viajando e residindo de país em país para alterar resultados eleitorais. Ora, quantas Arábias Sauditas inteiras não seriam necessárias para alterar o resultado de uma única eleição estadual na Índia? Nós, piratas, preferimos focar nossos temores em ameaças menos delirantes à democracia e preferimos considerar os casos concretos daqueles que realmente sofrem a supressão cotidiana e injustificável de seus direitos apenas porque já nos acostumamos com nossos privilégios nacionais em casa, enquanto não sofremos o mesmo alijamento ao viajar e viver na mesma condição, seja por que motivos for.

Pelas mesmas razões defendemos e proclamamos inequivocamente a autodeterminação individual compreendida como a liberdade plena e irrestrita de escolha em todas as decisões sobre a reprodução e o governo do próprio corpo, incluindo todas as implicações relacionadas à anatomia, às identidades de gênero, às formas de condução e interrupção da vida e à ingestão, administração, consumo ou emprego de substâncias naturais e sintéticas.

No mesmo sentido, proclamamos que a neutralidade da rede é necessária para manter uma Internet livre e garantir a igualdade de tratamento entre todos os usuários. O Estado deve garantir o acesso livre e igual em contraposição ao interesses corporativos e políticos. Em nenhuma circunstância pode haver qualquer coerção governamental ou empresarial para filtrar ou manipular os dados transferidos. A igualdade de tratamento dos dados só pode ser garantida se os dados são transmitidos sem monitoramento do conteúdo e desvinculado de informações sobre os remetentes ou destinatários. Internet neutra significa também assegurar a liberdade de expressão.

Sob a mesma inspiração se apresenta nossa defesa do hackerativismo como um conjunto de práticas que envolvem o trabalho com dados – livremente disponibilizados ou obtidos através de outros meios – que contribuam para transformações políticas ou sociais. O hackeamento de dados, bem como seu compartilhamento, devem ser reconhecidos como ato político legítimo, desde que tal ato venha contribuir para causas de interesse público e não visem prejuízo material ou moral de indivíduos em particular. A liberdade de manifestação e as ações políticas virtuais – DDoS e deface – devem ser asseguradas pelo Estado, que de igual forma deve desenvolver programas de proteção aos whistleblowers.

Ressaltamos o compromisso inegociável com a defesa de whistleblowers, hackers e ativistas que sofrem uma perseguição política injustificável por conta de seus esforços em prol da radicalização da democracia digital em nossas sociedades. Pessoas como Chelsea Manning, Edward Snowden, Aaron Swartz e Anakata são alguns dos principais responsáveis pelo surgimento e pelo amadurecimento de uma consciência pirata, deixando cada vez mais claro que mesmo o ativismo mais descentralizado é perseguido e combatido pelas instituições estatais com a força e o arbítrio das estruturas mais autoritárias, policialescas e opressivas, colocando em jogo todas as conquistas democráticas em nome de uma noção estadocêntrica de segurança, que promove o sacrifício de alguns dos indivíduos mais brilhantes de nossa geração em nome da consolidação de nichos de poder institucional que visam a supressão dos direitos de todos nós. Devemos, portanto, proclamar o imperativo de se buscar desenvolver programas de proteção aos whistleblowers e lutar pelo fim do aprisionamento de prisioneiros de consciência e pela libertação imediata daqueles que já foram encarcerados.

Ahoj!

 

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