Monólogo do Vírus

mar 24, 2020 | Notícias | 0 Comentários

Vim desligar a máquina para a qual você não encontrou o freio de emergência

link original em francês aqui

Calem agora, caros humanos, todas as suas ridículas convocações à guerra. Abaixem os olhares vingativos que direcionam a mim. Apaguem a auréola de terror que vocês colocaram em meu nome.

Nós, os vírus, desde as profundezas bacterianas do mundo, somos o verdadeiro continuum da vida sobre a Terra. Sem nós, vocês jamais teriam visto a luz do dia – não mais que a primeira célula.

Nós somos seus ancestrais, da mesma forma que as pedras e as algas, e bem mais que os macacos. Estamos em todos os lugares que vocês estão e nos que não estão também. Se não enxergam aquilo que não lhes é semelhante, pior para vocês! E mais: parem de dizer que eu que estou matando vocês.

Vocês não morrem por causa de minha ação sobre o seu tecido, mas pela ausência de cuidado de seus pares. Se não agissem de maneira tão voraz entre vocês – como fazem com todo o resto que vive neste planeta -, ainda haveria bastante leitos, profissionais de saúde e respiradores para sobreviver aos danos que eu causo em seus pulmões. Se não armazenassem as pessoas idosas em lugares para morrer e as saudáveis em jaulas de concreto armado, vocês não estariam assim. Se não tivessem transformado toda a extensão (até recentemente) luxuosa, caótica e infinitamente povoada do mundo – ou melhor, dos mundos – em um vasto deserto destinado à monocultura do Mesmo e do Mais, eu não poderia ter iniciado a conquista planetária de suas gargantas.

Se, ao longo do último século, vocês não tivessem se tornado, em quase sua totalidade, cópias redundantes de uma única e insustentável forma de vida, vocês não estariam prontos para morrer como moscas abandonadas na água de sua civilização adocicada. Se não tivessem tornado seu ambiente tão vazio, transparente e abstrato, podem acreditar que eu não estaria viajando na velocidade de um avião. Estou aqui para executar a pena que vocês ditaram há muito tempo contra vocês mesmos. Peço perdão, mas foram vocês – até onde sei – que inventaram o nome “Antropoceno”.

Vocês se premiaram com toda a honra do desastre; agora que tudo está feito, é tarde demais para desistir. As pessoas mais honestas dentre vocês sabem muito bem: não tenho outros cúmplices senão sua organização social, a loucura de sua “grande escala” e de sua economia, seu fanatismo em torno do sistema. Apenas os sistemas são “vulneráveis”. O resto vive e morre. Só há “vulnerabilidade” para o que visa o controle, sua própria extensão e seu aperfeiçoamento. Preste bem atenção em mim: sou apenas a outra face da Morte reinante.

Então parem de me culpar, de me acusar, de me perseguir. Saiam dessa paralisia diante de mim. Tudo isso é infantil. Eu proponho uma conversão do seu olhar: há uma inteligência imanente à vida. Não precisa haver um sujeito para haver uma memória ou uma estratégia. Não há necessidade de um soberano para que uma decisão seja tomada. Bactérias e vírus são senhores de tudo. Então, vocês podem ver mais um salvador em mim que um coveiro. Você é livre para não acreditar em mim, mas eu vim para interromper a máquina cujo freio de emergência vocês não encontraram.

Eu vim para suspender a operação que fazia vocês de reféns. Eu vim manifestar a aberração da “normalidade”. “Delegar nossa alimentação, nossa proteção e a capacidade de cuidar de nossa qualidade de vida a outros foi uma loucura”… “Não haverá limite orçamentário, pois a saúde não tem preço”. Vejam como eu dobro a língua e o espírito de seus governantes. Vejam como eu os coloco de volta em seus lugares, como os mercadores miseráveis e arrogantes que são! Vejam como, repentinamente, eles se mostram não apenas supérfluos, mas também nocivos! Para eles, vocês não são nada além de uma base de apoio para a reprodução do sistema – são ainda menos que escravos. Até mesmo o plâncton é tratado melhor que vocês.

No entanto, tomem bastante cuidado para não sobrecarregá-los com censuras, para não incriminar suas faltas. Acusá-los de negligência é atribuir mais que o que merecem. Em vez disso, perguntem a si mesmos sobre como se sentiram tão confortáveis se deixando governar. Elogiar os méritos da opção chinesa contra a opção britânica, da solução imperial-forense contra o método darwinista-liberal é não compreender nada sobre um ou outro, sobre o horror de um ou do outro.

Desde Quesnay que os “liberais” passaram a ver o império chinês como desejável – e continuam fazendo isso. São irmãos siameses. Se um lhes aprisiona pelo seu próprio bem e o outro pelo bem “da sociedade”, é porque isso equivale à destruição do único comportamento que não é niilista: cuidar de si, de quem amamos e do que amamos nas pessoas que não conhecemos. Não deixe que aqueles que lhes conduziram ao abismo finjam que estão lhes tirando dele. Eles não farão nada além de lhes preparar um inferno ainda mais aprimorado, um túmulo ainda mais profundo. No dia que for possível colocar o exército para patrulhar o Além, eles farão isso.

Em vez disso, agradeçam a mim. Sem mim, por quanto tempo mais vocês fariam parecer necessárias todas essas coisas supostamente inquestionáveis e que se encontram suspensas subitamente por decreto? A globalização, as competições, o tráfego aéreo, os limites orçamentários, as eleições, o espetáculo dos campeonatos esportivos, a Disneylândia, as academias, a maioria das lojas, a assembleia nacional, o aquartelamento escolar, as aglomerações massivas, o grosso dos empregos burocráticos, toda essa sociabilidade intoxicada que é nada além do outro lado da solidão angustiante das mônadas metropolitanas: tudo isso se mostra desnecessário quando o estado de necessidade se manifesta.

Agradeça-me por mostrar-lhes a verdade das próximas semanas: vocês finalmente poderão viver suas próprias vidas, sem as milhares de rotas de escape que sustentam o ritmo do insustentável. Sem que percebessem, vocês nunca concluíram a mudança para suas próprias existências. Estavam vivendo no meio de caixas de papelão e nem sabiam. Agora, vocês podem viver com seus entes queridos. Vocês poderão viver em suas próprias casas. Não estarão mais no caminho para a morte. Pode ser que você odeie seu marido. Pode ser que tenha vontade de abandonar suas crianças. Pode ser que queira explodir a decoração de sua vida cotidiana.

Para falar a verdade, vocês não estavam mais no mundo, mas nas metrópoles da desagregação. O mundo de vocês não era mais habitável em qualquer um de seus pontos – só se podia fugir incessantemente. A presença do hediondo era tão grande que vocês precisavam se afogar em movimentos e distrações. E o espectral reinava entre os seres. Tornou-se tudo tão eficaz que nada mais fazia sentido. Agradeçam-me por tudo isso e sejam bem-vindos à Terra.

Graças a mim, por um tempo indefinido, vocês não trabalharão mais, suas crianças não irão mais à escola e, ainda assim, nada disso será como nas férias. As férias são o espaço que deve ser ocupado a todo custo enquanto se espera o retorno do trabalho. Mas, isso que se abre diante de vocês, graças a mim, não é um espaço delimitado – é uma fenda imensa. Eu desocupei vocês. Nada garante que o não-mundo de antes retornará. Todo esse lucrativo absurdo pode ter acabado. Depois de não pagarem mais tantos aluguéis, o que poderá ser mais natural que isso? Por que aquele que já não pode mais trabalhar ainda pagaria seus boletos no banco? No fim das contas, não é suicídio viver onde você não pode sequer cultivar um jardim? Quem não tem mais dinheiro não deixará de precisar comer como antes – e quem tem o ferro, tem o pão.

Agradeçam a mim: eu lhes coloquei diante da bifurcação que estruturou tacitamente suas vidas: economia ou vida. Depende de vocês. O que está em jogo é algo histórico. Ou os governos forçam seu estado de exceção, ou vocês inventam seu próprio. Ou vocês se agarram às verdades que estão se manifestando, ou vocês apostam suas vidas. Ou vocês aproveitam o tempo que lhes dei para imaginar o mundo do amanhã a partir das lições provenientes da destruição em curso, ou isto aqui se radicalizará até o fim. O desastre termina quando termina a economia. A economia é a devastação. Isso era uma tese antes do mês passado. Agora é um fato. Não se pode mais ignorar o que haverá de polícia, vigilância, propaganda e logística do home office para suprimir esse fato.

Diante de mim, não cedam ao pânico e nem ao negacionismo. Não cedam às histerias biopolíticas. As semanas que virão serão terríveis, exaustivas e cruéis. As portas da Morte estarão abertas. Eu sou a produção mais devastadora da devastação da produção. Eu vim para tornar nulos os niilistas. Nunca mais as injustiças serão tão gritantes. É uma civilização que venho enterrar – e não vocês. Quem quiser viver terá de inventar hábitos novos e próprios. Fugir de mim será a ocasião para a reinvenção dessa nova arte das distâncias.

A arte dos cumprimentos, na qual algumas pessoas eram míopes demais para ver a própria forma da instituição, logo não obedecerá mais a qualquer etiqueta. Ela será a marca de todos os seres. Não façam isso “pelos outros”, pela “população” ou pela “sociedade” – façam isso por vocês. Cuidem de suas amizades e de seus amores. Repensem, em conjunto e de maneira soberana, uma forma justa de vida. Formem aglomerações de vida boa e as espalhem que eu não conseguirei fazer mais nada contra vocês. Esse não é um apelo ao retorno massivo da disciplina, mas da atenção. Não ao fim de toda despreocupação, mas de toda negligência. Que outra maneira eu poderia encontrar de lembrar que a salvação está em cada gesto? Que tudo está no mais ínfimo?

Eu me rendo às evidências: a humanidade se coloca apenas as questões que ela já não pode mais colocar.

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