A Questão da Unidade (Uma Perspectiva Libertária)

mar 1, 2018 | Artigos e Publicações, Notícias, Opinião PIRATA | 0 Comentários

por Carlos Cox*

Em uma democracia, a vontade da maioria é vista superficialmente como algo monolítico, quando na verdade nunca o é. Devido às limitações psiônicas de nossa espécie, democracias são construídas na base de consensos formados entre múltiplos grupos e indivíduos, que abrem mão de suas divergências particulares momentaneamente para assumir um acordo a partir de suas convergências. O mito do Consenso Perfeito portanto, é uma premissa perigosa e homogeneizadora.

O princípio do Fascismo, por exemplo, é de impor a homogeneidade fazendo com todos se submetam ao Estado enquanto este, por sua vez, se submete ao Mercado. O Fascismo é uma perversão reacionária do Socialismo Autoritário. Em contrapartida, uma sociedade anarquista, teria que ser uma sociedade libertária, sem opressão, sem imposições, exceto nas circunstâncias lógicas que tais atitudes se tornassem necessárias para a preservação do próprio conceito de liberdade. Tolerar a intolerância é cumplicidade. Não coibir opressões é legitimá-las.

Uma sociedade libertária se constrói e se sustenta a partir da livre formação de consensos. E uma coisa muito relevante para o próprio conceito de consenso é que tais consensos, tais acordos, têm uma dimensão primariamente objetiva. “O combinado não sai caro” é uma expressão popular que materializa essa afirmação.

Objetividade e Subjetividade

É certo que indvíduos e também grupos e até organizações, são entidades carregadas de subjetividade. E é possível encontrar e analisar subjetividades e “intenções” em qualquer acordo. Portanto, mesmo sendo primariamente objetivos, nenhum consenso será suficiente para dar conta de todas as possibilidades. Da mesma maneira que a própria ciência jamais formará certezas absolutas por sua propriedade intrínseca de ter que sempre estar aberta a novas investigações.

Mas, embora os acordos, os consensos e até as verdades científicas sejam inerentemente imperfeitos e passíveis de mudança e aprimoramento, não deixam de ser circunstancialmente válidos e nem de configurar a melhor metodologia que temos até o momento para administrar as incertezas.

É curioso e até risível, ou talvez nefasto que o discurso padrão do Sistema Estatal-Capitalista atribui para si as virtudes libertárias do processo democrático quando seus apologistas recitam o velho adágio de que “pode não ser perfeito, mas é o melhor que já foi inventado até o momento”, dando a entender subjetivamente que o simulacro de liberdade que algumas classes privilegiadas vivenciam representa a verdadeira liberdade e não uma versão degenerada dela. Se há qualquer democracia no Sistema atual, isso ocorre apesar dele, não devido a ele.

Dito isso, não podemos ser ingênuos com relação a nenhum sistema. Não é libertário evitar ou proibir o questionamento a qualquer ideia. E é por isso que em uma sociedade anarquista é esperado e simplesmente lógico que existam diversas ideias e propostas sobre como tal socieade deve se organizar. O mito da perfeita Democracia, de uma Vontade Popular, de uma Opinião Pública e em suma da Unidade ideológica e política, ignora de forma ingênua, proposital ou acidental, que tal fenômeno depende da cooperação dos indivíduos que formam a coletividade, e da supressão condicional de suas divergências (frequentemente a partir da autocensura).

Se tal fenômeno for analisado em um microscópio psíquico, diversas variáveis serão encontradas. As mais diversas motivações podem estar por trás do posicionamento de um indivíduo, sejam tão objetivas quanto o alinhamento ideológico com uma proposta específica, quanto subjetivas como a pressão social de se conformar ou até a influência inefável do grau de conforto dos calçados que está vestindo no momento. Uma pessoa pode estar concordando com algo por motivos objetivos e racionais ou sociais, por preguiça, ignorância ou até algum equívoco. Um dos motivos para o mito do Consenso ser tão sedutor é que desejamos íntimamente que o outro veja o mundo com nossos olhos, e, no entanto, esse ideal jamais será alcançavel em sua completude.

Horizontalidade

Uma das ideologias que surgem desse tipo de premissa é a da busca pela Horizontalidade. Tal proposta é essencialmente benevolente e apresenta o conceito de um sistema politicamente igualitário que se baseia na suposição equivocada de ser possível atingir consensos perfeitos se for implantada de forma absolutista. Igualmente, os ideais de justiça, verdade, bondade, convivência pacífica, etc, são certamente valores dignos de esforço, mas também exigem razoabilidade em sua aplicação, caso contrário podem se tornar o oposto do que representam.

Assim como a “unidade a qualquer preço” é opressiva e opressora, a “individualidade sem limites” também o é. Quando uma pessoa se vê forçada a se submeter a um consenso pela pressão de fatores externos como o prolongamento indefinido de uma assembléia, por causa da premissa de unanimidade como valor absoluto, é tão incoerente quanto a abstenção de todos os outros que não tiveram condições de esperar o encerramento da votação após os limites de tempo terem sido violados. Tal consenso é ainda mais falso e mais imperfeito do que o normal, frequentemente influenciado por fatores econômicos, raciais, de gênero, etc.

Nenhum indivíduo é uma ilha, somos animais sociais e precisamos aprender a lidar com as incertezas que a realidade nos impõe com algum nível de praticidade se pretendemos existir neste mundo. A vida em sociedade é essencialmente dinâmica e cheia de consensos em constante fluxo. O desafio está em encontrar e construir um equilíbrio de liberdades e realizar os movimentos necessários para mantê-lo.

Quando Cristãos contabilizam seus números a partir da totalidade global daqueles que dizem seguir a mesma divindade, dizendo ser parte de 2 bilhões de seguidores, estão supondo uma unidade ideológica que nunca tiveram realmente em qualquer profundidade. O próprio Capitalismo tem as mais variadas escolas e correntes e subcorrentes até às divergências individuais de cada economista e até de cada leigo.

O campo da teoria e o mundo das ideias é praticamente infinito e com limites muito menos definidos que os impostos pelo mundo real. Abrir mão de utopismos, no entanto, não é abrir mão de valores, não é desistir de ser guiado pela bússola dos ideais. Não é o mesmo que aceitar qualquer coisa, e especialmente a realidade nefasta na qual vivemos. Muito menos significa aceitar qualquer tipo de autoritarismo ou hierarquismo. A utilidade prática de autoridades condicionais e regras de convivência não é carta branca, nem pressupõe qualquer tipo de submissão. Pelo contrário. Mesmo que autoridades sejam consequências da especialização de conhecimentos ou da necessidade de organizar e ordenar atividades conjuntas, jamais justificam o abandono do princípio da “presunção de ilegitimidade”. Toda e qualquer autoridade deve ser justificada e portanto tem o dever de se justificar para ser considerada legítima. Isso não se altera, nem mesmo no caso de tais autoridades serem “oficialmente abolidas”, ou seja, no caso de serem relegadas à informalidade.

Ordem e Liberdade

Uma ordem construída com base na igualdade não pode negar as diferenças individuais e as circunstâncias da realidade sem correr o risco de se dissolver em uma poça de incoerência. Portanto, a conquista de um novo Sistema Libertário só sera alcançada quando este sistema for construído coletivamente e conseguir atingir uma consistência, coerência e eficiência estrutural que seja capaz de suplantar e vencer os choques culturais, econômicos, políticos, físicos, ideológicos e psíquicos-emocionais contra o Sistema Opressor.

O desafio de encontrar o meio termo entre a individualidade e a comunidade, de efetuar uma divisão de tarefas que não dependa de violências simbólicas ou estruturais e seja capaz de organizar as relações interpessoais, sendo continuamente e organicamente ajustada sem perder a eficácia, é a meta.

Respostas simples quase nunca dão conta de solucionar questões complexas. Os acordos sociais grandes ou pequenos formalizados ou informais exigem constante compromisso. Não apenas entre as partes, mas com o que se busca coletivamente. O desejo de liberdade só se concretiza na prática pelo intermédio da política. Não a política maquiavélica dos poderosos, mas a verdadeira política como resolução das diferenças que busca alcançar o maior grau de liberdade do arbítrio possível, de todas as partes, dentro das circunstâncias. E essa liberdade, não é algo ideal, tem de ser algo objetivo, e necessáriamente implica na responsabilidade de se cumprir com a palavra e de arcar com as consequências das decisões tomadas.

A visão de Aristóteles com relação à democracia era negativa por ser condicional à premissa de que “as massas desfavorecidas” seriam detentoras de um conceito “equivocado e ruim de Liberdade”. Para o arrogante filósofo a forma ideal de um sistema político democrático seria, portanto, a Politéia. Essa politéia seria a “democracia dos filósofos”, uma igualdade justificada e exercida por indivíduos conscientes e praticantes do conceito de liberdade próprio para se alcançar o convívio social com maior organização e liberdade possível. O conceito da Liberdade como sinônimo de responsabilidade.

Seguindo a lógica de tudo que foi exposto até o momento a melhor ordem política seria aquela que garanta a maior liberdade para o maior número de seres no maior número de circunstâncias sendo capaz de prover o melhor e mais justo funcionamento das atividades necessárias à sustentação desse sistema, incluindo a defesa contra subversões e ataques de concorrentes. A implementação dessa nova ordem passaria pelo processo de erosão do domínio da ordem vigente com a construção progressiva de alternativas incompatíveis e corrosivas às estruturas que a sustentam.

Tal proposta pode parecer impossível àqueles cuja imaginação permanece capturada pela doutrinação aprisionadora do Sistema e foram treinados para aprender um papel de submissão perpétua e a abandonar qualquer esperança de enxergar o universo de possibilidades que existe fora dele. Felizmente, tais limitações podem ser quebradas e desprogramadas, apesar de ser um trabalho penoso e um processo doloroso enxergar as atrocidades diárias causadas por este Sistema global.

O importante é entender que a construção deste Sistema Libertário depende de um compromisso legítimo, de honestidade intelectual, de ética nas atitudes, de muito estudo para reparar o atrofiamento político que nos foi inflingido pelo Sistema Opressor, mas principalmente, de constante prática. É necessário buscar sempre a razoabilidade nos processos, trabalhar com inteligência, não apenas com esforço. Identificar quando e como uma regra ou a ação de um árbitro é benéfica e justificada para os fins desejados, é tão importante quanto questionar e abolir a autoridade que falha em sustentar o ônus da prova.

Enfim. A revolução tem diversos caminhos, e deve acontecer em todas as áreas, todos os campos sociais, todos os espaços, todos os momentos, sendo um esforço conjunto de todos que querem construir um mundo justo e igualitário. Enquanto as diferenças e as divergências continuarem a nos dividir, o Sistema continuará firme, forte e imperturbado, A solução não é, nem nunca foi, o abandono da individualidade e a submissão a uma verdade única e messiânica. Isso não seria nem um pouco libertário ou revolucionário. A resposta está na ação conjunta e constante de grupos carregados de diferenças, teóricas, táticas, ideológicas, que buscam os mesmos fins, e atuam de forma sinérgica, sem perder tempo e energia brigando entre si, mas colocando suas ideias à prova, descobrindo e demonstrando pelo exemplo, a validade, eficiência e eficácia daquilo que acreditam durante a luta coletiva contra o Sistema.

Anarquia é ordem.

*Este texto é a visão do autor e não reflete necessariamente a linha programática e ideológica do Partido Pirata.

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