A quem pertence o horizonte?

jul 8, 2015 | Compartilhamento de arquivos, Legislação, Notícias, Opinião PIRATA | 0 Comentários

Por sunniewalker 

Já imaginou como seria não poder publicar suas fotos de viagem em blogs ou redes sociais? Ou mesmo fotos de passeios pela cidade precisassem de autorização, cuja violação, mesmo que não intencional, pudesse transformar pessoas comuns em criminosos?

Essa ideia não está num mundo tão longe – na verdade, está em discussão logo do outro lado do Atlântico, no momento em que o Parlamento Europeu estuda aplicar as leis de direitos autorais sobre elementos da paisagem, abrangendo de casas particulares a prédios históricos e monumentos públicos.

O direito à visão das cidades

A maioria dos países hoje entende que as pessoas são livres para fotografar e reproduzir imagens de locais públicos como quiserem – incluindo o uso comercial, como em calendários, ensaios fotográficos, souvenirs, e por aí vai. Porém, isso não é uma regra: alguns países possuem leis que permitem apenas o uso não comercial de imagens, e outros ainda restringem legalmente o uso em todas as formas, mesmo não comercial, como França e Itália.

Na tentativa de tornar a regra uniforme e garantir o direito das pessoas de vivenciar os espaços públicos, a parlamentar Julia Reda, do Partido Pirata alemão, apresentou uma proposta estendendo o Freedom of Panorama (a liberdade de vista, em tradução livre) a todos os membros da união europeia.

O Freedom of Panorama é uma exceção às normas de direitos autorais que entende a paisagem e os espaços públicos como livres, o que permite a qualquer um a captura de imagens e vídeo e a criação de arte inspirada ou retratando esses espaços.

Imagem retirada da Wikipedia

Rapidamente, surgiu uma contraproposta, capitaneada por Jean-Marie Cavada, no entendimento de que pessoas e empresas poderiam estar enriquecendo às custas das paisagens e marcos turísticos frutos do trabalho e produção intelectual de outras pessoas. Assim, a exploração dessas paisagens deveria render royalties aos detentores dos direitos de imagem. O uso, reprodução e compartilhamento dessas imagens deveria respeitar a propriedade intelectual nos moldes que já são aplicados a outras indústrias, como a literária ou de cinema, sendo imprescindível a quem pretende dispor desse material a autorização por escrito do detentor dos direitos – que pode ser, dependendo do caso, o autor, patrocinador ou dono do imóvel ou obra de arte em questão.

Na prática, a lei estaria retroagindo para proteger copyrights que sequer existiam à época de execução de inúmeras obras, que estariam em tese sob domínio público.

A PESSOA COMUM COMO CRIMINOSO

Afinal, como um ato inocente como publicar fotos pessoais numa rede pessoal pode transformar em criminosa uma pessoa comum?

A medida, caso aprovada, atingiria diretamente uma série de profissionais que exercem atividades relacionadas à imagem, como fotógrafos e artistas, mas poderia também se voltar contra qualquer cidadão que não tenha intenção de uso comercial dessas imagens. Ocorre que, ainda que você não seja uma empresa e não tenha intenção de vender as fotos ou utilizá-las de outra maneira, redes como Facebook e Instagram o são – e em seus termos de uso explicitam a possibilidade de utilizar material postado por usuários nessas redes. Em interpretações mais rígidas, o fato de estarem em redes de empresas com fins comerciais é suficiente para caracterizar a infração.

Alguns monumentos famosos e muito procurados por visitantes, como a Torre Eiffel em Paris, o London Eye de Londres e o Atomium na Bélgica são exemplos de obras protegidas por direitos autorais e que mantém maior fiscalização sobre conteúdo compartilhado envolvendo suas imagens. Na Alemanha, o Neuschweinstein, antiga morada do Rei Ludovico da Bavária e conhecido por inspirar o castelo da Cinderela na animação Disney, passou a ser administrado por uma empresa privada e proibiu que os visitantes tirem fotografias internas das incríveis pinturas – cada cômodo inspirado em uma obra do compositor Richard Wagner – sendo possível a aquisição de livretos na lojinha do museu. A Torre Eiffel se tornou um caso icônico após uma decisão judicial acatar o argumento, por parte da  da empresa  administradora, de que apesar de os direitos sobre a estrutura terem expirado há muito tempo a iluminação instalada por ocasião do centenário da torre seria uma espécie de nova releitura artística , sujeita portanto às leis quando as luzes estão acesas – o que acarretou um alerta de proibição definitiva do uso de fotos do local à noite, gerando insatisfação em turistas e moradores.  

O extremismo nesse tipo de proposta pode acarretar casos jurídicos bisonhos – hipoteticamente, quem infringe uma regra de copyright pode ser condenado desde a indenizar os detentores dos direitos autorais até ir parar de fato numa prisão, ainda que seja algo de menor potencial ofensivo. Isso ocorreu de fato numa série de investigações que resultaram em prisões de pessoas que compartilhavam mídia, como músicas e filmes, em meados dos anos 2000. A reação a essas prisões, pelo livre compartilhamento de conhecimento, culminou no fortalecimento dos movimentos pirata na Europa, culminando em seu crescimento e atuação como partidos.

O QUE PODE ACONTECER NO BRASIL?

No Brasil, diferente de muitos países europeus e dos Estados Unidos, compartilhar arquivos que não são de sua propriedade intelectual pode ser entendido em última instância como contravenção, mas o crime se configura na presunção de obtenção de lucro – por exemplo, na venda de CDs e DVDs pirata. Além disso, pela lei brasileira de direitos autorais, mesmo para publicação de imagens em qualquer pesquisa ou artigo acadêmico é necessário adquirir a imagem ou obter permissão de uso – mesmo para espaços públicos, como no caso de monumentos, parques ou edificações, sendo a única exceção as vias e logradouros públicos e obras permanentemente assentadas sobre esses locais (sem as edificações).

Afinal, como saber o que exatamente será tratado como uma vista privada ou livre?

O Brasil também tem sua cota de casos. Cartão Postal e uma das Novas Sete Maravilhas do Mundo, o Cristo Redentor foi objeto de um pedido de indenização da Arquidiocese do Rio sobre a Columbia Pictures, em 2010, pelo uso de imagens no filme-catástrofe “2012” (dirigido por Roland Emmerich) em que a estátua é destruída. Em 2014, a Arquidiocese vetou a veiculação de uma cena em que o Cristo aparece no filme Inútil Paisagem, de José Padillha, por considerá-la desrespeitosa. A estátua ainda é alvo de disputa judicial pela família do escultor Paul Maximilian Landowski, que move ações em diversos tribunais para receber direitos autorias sobre qualquer uso da imagem do Cristo, incluindo publicidade, postais, pôsteres, livros e outros souvenires.

Parece improvável que uma lei semelhante seja aprovada nesses moldes no Brasil, menos rigoroso em relação a compartilhamento de conteúdo, mas os efeitos de uma norma desse tipo certamente seriam sentidos. Talvez sejam travadas batalhas entre lobbyistas da indústria de cinema e governos e indústrias locais, interessados em lucrar um pouco mais com a imagem de suas edificações.

O que é certo é que, caso aprovada, tal proposta será sem dúvida um pesado grilhão sobre os direitos das pessoas às cidades e ao mundo que nos cerca, deixando um futuro menos livre e muito incerto sobre o alcance dos tentáculos da proteção à propriedade intelectual.

Em tempo

Há uma petição, que já conta com mais de 200.000 assinaturas, pedindo pela rejeição da proposta que obriga a autorização prévia do autor para uso de imagens de obras e edifícios em ambientes públicos, e que pode ser assinada nesse link.

 

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