O cargo de ‘Ombudsman’ foi inspirado numa função chamada ‘Ombudsman/Ombudskvinna’, sendo ‘ombud’ uma palavra da língua sueca para falar de ‘representante’, ‘agente’, ‘alguém que fala em nome de outras pessoas, advoga por elas ou as representa’ (e ‘man’ = ‘homem’, ou ‘kvinna’ = ‘mulher’).

Em 1713, o rei sueco Karl XII estava no exílio e precisava de alguém que atuasse em seu lugar, para garantir que, por exemplo, as pessoas que atuassem no âmbito judiciário o fizessem de acordo com as leis. Criou-se então o cargo de ‘Högste Ombudsmannen’, Supremo Ombudsman, que posteriormente se tornou o Chanceler de Justiça, função que envolvia também a observância das leis, mas não um poder judiciário. Além disso, o Chanceler poderia fazer coisas como receber reclamações sobre a administração estatal e aconselhar o governo em questões legais.

O conceito de ‘Ombudsman/Ombudskvinna’ trazido para o Partido Pirata aqui no Brasil, no entanto, está mais próximo do que é usado em instituições e empresas do que o usado na política em geral. Nesse último contexto, o cargo ainda remete à observância das leis, mas o foco passa ser mais nas pessoas cidadãs e na fiscalização de ações irregulares de governos. Já no contexto empresarial, a atuação da pessoa exercendo esse cargo gira sobretudo em torno da resolução de conflitos e disputas, embora também possa ter esse papel de fiscalização e defesa dos interesses públicos¹.

A ideia é que o ombudsman seja alguém que vá agir de forma o mais neutra possível e, por isso mesmo, não pode possuir outras funções no mesmo ambiente organizacional, para evitar conflito de interesses. Mais quais as funções da Gestão de Crises (GC) definidas em nosso estatuto? O artigo 51 é o que dá a definição principal do cargo:

I – Instaurar, monitorar e fiscalizar a condução de procedimentos disciplinares, nos termos deste Estatuto;
II – Estipular, cumprir e fazer cumprir os prazos para a abertura e conclusão de procedimentos disciplinares;
III – Instaurar e conduzir procedimentos de mediação e arbitragem de conflitos internos em todas as instâncias e níveis da estrutura partidária, de acordo com princípios e regras legais e estatutárias aplicáveis.
IV – Apresentar, nos meios oficiais de consulta do Partido, relatórios periódicos sobre sua atuação na mediação e gestão de conflitos e sobre o andamento das soluções adotadas;
V – Buscar junto aos Grupos de Trabalho do Partido e outras instâncias consultivas a assessoria técnica que julgar necessária para realizar suas incumbências;
VI – Arbitrar soluções para situações de crise que não envolvam ilícitos, ilegalidades ou violações estatutárias, desde que a mesma não viole princípios estatutários;
VII – Atuar como custos legis em Comissão Julgadora, oferecendo denúncia contra infratores das normas estatutárias e elaborando pareceres detalhados referentes à conduta das pessoas denunciadas.
VIII – Decidir sobre a instauração de novo procedimento a partir da consideração de fatos novos desconhecidos no curso de procedimento disciplinar já transitado em julgado;
IX – Auxiliar a Coordenação Nacional no exercício de sua atribuição deliberativa sobre os casos omissos deste Estatuto.

A fiscalização da aplicação de normas e a mediação e arbitragem de conflitos são relacionadas às duas concepções de ‘Ombudsman/Ombudskvinna’ acima mencionadas. Dado que o GT Jurídico pode exercer no cotidiano do partido a função de fiscalização de forma mais adequada, o foco da Gestão de Crises acaba se voltando mais para a resolução de conflitos e atuação em Comissões Julgadoras. A mediação interna parece ter sido um dos motivos mais fortes para a criação do cargo em nosso estatuto, principalmente com o intuito de conter danos causados pelos próprios membros do Partido e evitar um excesso de exposição de problemas internos.

Se vamos confiar na narrativa mais corrente sobre um dos fracassos do Partido Pirata na Alemanha, esse tipo de exposição foi causa de uma queda considerável na credibilidade do Partido. Além disso, não foram poucas as pessoas que se aproveitaram do péssimo hábito de membros do Partido discutirem seus problemas em grupos abertos de Facebook para provocar, de forma oportunista, ainda mais danos à imagem do Partido e das pessoas envolvidas. Por outro lado, a GC, desde sua criação por aqui, não parece ter se preocupado minimamente com essas questões, tendo atuado sobretudo nas Comissões Julgadoras, focando mais no processo disciplinar do que na mediação de conflitos.

Sendo assim, proponho três eixos de fundamentação da atuação de uma instância de Gestão de Crises para o Partido Pirata no Brasil:

1) ESCUTA

Parece imprescindível para o trabalho da GC a disposição a uma escuta parcialmente semelhante à que Freud apresentou em 1912 para profissionais da saúde. O que seria interessante aqui é a abertura e inclinação a escutar as pessoas e suas questões mantendo a ‘atenção flutuante’, sem focar em algum trecho do que é relatado, elaborando uma interpretação já disponível, de modo a emitir um diagnóstico apressado da situação. Desconsideradas as diferenças de aplicação dessa ideia, é preciso reconhecer que não é possível a mediação de conflitos, principalmente dentro de uma abordagem restaurativa, sem uma escuta nesse sentido.

A GC não deve se prestar ao trabalho de caçar motivos para punir pessoas, mas buscar entender os conflitos e as partes envolvidas, escutá-las até onde for possível, e a partir disso apresentar sugestões sobre como resolver os conflitos. Para isso, é bem vindo o auxílio de profissionais da área da saúde mental que, por conta de sua própria atuação profissional e formação, possuem treinamento e disposição para abrir seus ouvidos às questões trazidas pelas pessoas, sem incorrer em julgamentos mentais prévios a partir de suas próprias crenças políticas, religiosas etc.

2) CONTENÇÃO DE DANOS

Como já dito, a GC foi pensada em parte para diminuir o impactos negativos interno e externo causados por conflitos entre pessoas associadas ao Partido. No entanto, isso parece não ser possível sem que haja espaços reservados para a atuação da GC. Conferências por vídeo e áudio com as pessoas que procurem essa instância do Partido devem ser a regra para possibilitar uma escuta razoável. A GC não deve, sob hipótese alguma, intervir em discussões em espaços públicos, sob a pena de acabar alimentando conflitos nos mesmos. Por outro lado, deve-se evitar a todo custo a proteção da ‘marca’, do nome e da instituição acima das pessoas.

Não são poucas as organizações que afundam tentando proteger sua imagem de forma desumana, silenciando e esmagando minorias no processo, deixando pessoas desamparadas dentro da própria organização e perdendo completamente de vista seus próprios princípios. A única credibilidade que o Partido Pirata e sua GC devem valorizar é a que surge involuntariamente a partir da ação coerente com seus princípios fundamentais, marcados em estatuto como cláusulas pétreas. Uma política de contenção de danos também deve privilegiar a solução de conflitos antes que eles escalem em proporção e alcance, e é fundamental que se evite que esses conflitos acabem em tribunais civis que, como sabemos, são marcados pela nossa profunda injustiça e seletividade penal.

A sociedade norueguesa, por exemplo, mesmo funcionando com tribunais e prisões e polícias como a nossa, dispõe de mecanismos de mediação de conflitos que garantiram que, em 2011 (para dar um exemplo encontrado em ‘Keeping the Peace: Conflict Resolution and Peaceful Societies Around the World’, capítulo 10), 89% de 6.184 casos de conflitos civis e criminais chegassem a acordos entre as partes. 79% desses acordos foram honrados, mas os números são impressionantes. A ideia desses dispositivos é evitar uma abordagem punitiva e dependente de tribunais. Desde 1991, uma lei exige que todo município norueguês disponibilize gratuitamente um ‘Konfliktrådet’ (o equivalente a um ‘mediador’), de forma que os casos que chegam até esses ‘conselhos’ muitas vezes partem da própria polícia quando não se sente capaz de resolver determinada situação.

A contenção de conflitos e danos nesse modelo é também uma forma de evitar desgastes, soluções agressivas ou injustas, decisões que foquem meramente na punição e não tragam nenhuma reparação dos danos provocados pelo conflito, dentre outras coisas. Também se evita ao máximo desperdiçar recursos mentais, financeiros e temporais em tribunais.

3) JUSTIÇA RESTAURATIVA

A mediação de conflitos no Konfliktrådets é uma forma de Justiça Restaurativa (JR). Mas o que é isso? O fundamental desse modelo de justiça é a contraposição à punição e à retribuição, propondo a restituição/reparação/restauração como nova concepção-base da justiça. Isso significa entender os ‘crimes’ e outras violações de códigos disciplinares como danos causados ao tecido social, às relações interpessoais, ao convívio, de tal forma que seriam os efeitos desses danos os objetos maiores da justiça. Não são poucas as sociedades que adotam uma forma ou outra de JR. Em geral, sociedades sem estado são conhecidas por adotarem esse tipo de alternativa na resolução de seus problemas (chamados ‘crimes’ em nosso modelo de sociedade), mas, como visto no caso da Noruega, é possível fazer diferente sem mudar profundamente as instituições de um território. A mentalidade de contenção de danos é vital para que os conflitos sejam resolvidos e os prejuízos à sociedade sanados de forma menos desgastante e mais eficiente. Mas é preciso mais do que isso para colocar em prática uma variação de JR (falando em variações, é importante a abertura a diferentes tipos de JR, à experimentação, e ao aprendizado com erros).

Um exemplo de JR: o povo Navajo escolhe uma pessoa respeitada por todas as partes envolvidas no conflito como ‘justa’ e imparcial, e essa pessoa atua no sentido de restaurar a paz na comunidade. Uma pessoa mediadora pode ser procurada até mesmo por quem causou o dano à comunidade. Na lógica punitivista-estatal, toda atenção é voltada à resposta a ser dada para a pessoa que cometeu a ofensa e os problemas e danos causados à comunidade são ridiculamente negligenciados. Na lógica Navajo, busca-se reconectar a pessoa agressora ao resto da sociedade, restaurando seus laços com a mesma, e isso sem deixar a pessoa que mais sofreu com essa agressão sem o devido suporte psicológico e moral, de forma que ela possa se sentir segura e plena novamente. Quem cometeu a ofensa muitas vezes paga uma restituição (nalyeeh), uma oferta de valor simbólico e que seja conjuntamente compreendida como suficiente para que a harmonia social retorne. Narrativas sobre figuras ancestrais e o modo como elas resolviam seus conflitos são frequentemente fundamentais.

Deve-se ter em mente que dinâmicas restaurativas ao redor do mundo são responsáveis pela manutenção da reincidência em níveis baixíssimos, além da diminuição da ‘criminalidade’, sem contar a já mencionada questão da contenção de danos e reparação eficiente e satisfatória dos prejuízos causados às comunidades. A inspiração para a GC deve ser a lógica restaurativa, e as dinâmicas associadas devem ser estudadas e registradas para que não faltem recursos de aprendizado. Dado um eventual fracasso nessa forma de fazer as coisas, pouco restaria para a GC além de enviar recomendações e informações para a futura Comissão Julgadora. Esta deve respeitar o acúmulo e o trabalho feito pela GC antes de tomar qualquer decisão, tendo consciência de que só está agindo dentro do Partido porque houve um fracasso na instância anterior. Cada pronunciamento da Comissão Julgadora deve ser para nós um motivo de vergonha, e nos motivar para que façamos melhor.

¹ Aqui você pode conferir relatos do primeiro ombudsman da imprensa brasileira, por exemplo:

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