[OPINIÃO PIRATA]: Do bloqueio ao Whatsapp à criminalização da criptografia – Todos somos suspeitos

jul 20, 2016 | Cultura Digital, Internet, Legislação, Marco Civil, Opinião PIRATA | 2 Comentários

por Tiago Rocha

“A criptografia é a derradeira forma de ação direta não violenta.” – Julian Assange (Cypherpunks – Liberdade e o Futuro da Internet)

Queria começar esse texto com um alerta claro e direto: o Facebook não é amigo da liberdade de expressão e da segurança de dados das pessoas que usam seus aplicativos e serviços no mundo todo, não se iluda com isso. Em 2013, Edward Snowden (hoje refugiado político na Rússia) trouxe ao conhecimento do mundo o PRISM, programa de vigilância em massa do governo dos EUA em nível global, com participação ativa das principais empresas de telecomunicações e de tecnologia do mundo, dentre elas a Facebook Inc. Então que fique em mente o tempo todo que, não, a empresa Facebook não é uma defensora da liberdade de expressão em qualquer sentido e muito menos na preservação de dados. Para mais detalhes do PRISM é só fazer uma rápida pesquisa no Google, outra empresa colaboradora do PRISM, que é fácil achar farto material. Alerta dado, vamos ao que nos interessa no que diz respeito ao Brasil.

Pela quarta vez o Whatsapp foi bloqueado e a justificativa é a mesma de sempre: a Facebook Inc. não está cumprindo determinação judicial para entrega de dados de pessoas investigadas. A empresa já se defendeu alegando ser impossível, já que implementou criptografia ponta-a-ponta em seu mensageiro, o que significa que a mensagem é codificada e nem mesmo a empresa tem acesso ao conteúdo trocado entre as partes. Bom, levando em consideração o seu histórico de parceria com o Estado nos EUA, duvido que isso seja uma verdade absoluta, mas vira verdade absoluta para um simples juiz ou juíza de primeira instância no Brasil. Tranquilamente. Nosso judiciário teima em ignorar esse detalhe técnico e insiste em solicitar dados impossíveis de serem entregues, então essa juíza, Daniela Barbosa, deu um passo além e solicitou ao Whatsapp que criasse um mecanismo de vigilância quebrando a criptografia. Isso muda completamente todo o quadro e eleva a gravidade dessa decisão e pedido ao nível de regimes políticos extremamente autoritários.

Na prática, a juíza solicita que se crie um backdoor dentro do Whatsapp para livre acesso de qualquer autoridade policial. Ou seja, equivale a uma chave-mestra na mão da polícia e do judiciário onde qualquer porta da sua casa, gaveta, livro, correspondência poderiam ser abertos com uma simples canetada e sem que você tenha qualquer conhecimento disso. Essa prática é típica de ditaduras onde o cidadão é o eterno suspeito e está à disposição para qualquer violação de sua privacidade. Esse pedido abre um precedente perigosíssimo para um vigilantismo permanente e uma militarização cada vez mais explícita e abrangente dos meios digitais. É bem verdade que práticas criminosas podem ser planejadas através de meios digitais seguros via criptografia, mas também é igualmente verdade que isso pode ocorrer em qualquer meio, seja físico ou digital, e colocar câmeras vigiando toda e qualquer pessoa é um preço muito alto que, creio, não queremos pagar. Ao menos eu não quero. Para além disso, o ministro da justiça Alexandre Moraes (ex-secretário de segurança de São Paulo, instituição acusada de incontáveis violações de direitos por causa da polícia militar) anunciou que o governo interino de Michel Temer vai propor projeto de lei relacionado à quebra de criptografia. Assim se inicia a criminalização da criptografia.

Na prática, isso só pode ser feito proibindo criptografia ou fazendo acordos por baixo dos panos com as empresas de tecnologia para que elas insiram backdoors em suas aplicações para monitoramento constante por parte da polícia. Isso é extremamente preocupante e viola uma infinidade de leis, dentre elas a Constituição Federal, o Marco Civil da Internet e a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos (da ONU) da qual o Brasil é signatário. É estarrecedor imaginar o nível da militarização da rede, que por essência traz a liberdade da troca de informações e fluxo de dados, agora correndo risco de um monitoramento constante e legalizado. Todos os espaços são disputados, palmo a palmo, entre a liberdade e a completa dominação autoritária, e isso não é diferente com o ciberespaço. Nós, de movimentos sociais e que prezamos pela liberdade de informação, comunicação, conhecimento e expressão, temos de estar completamente vigilantes e a postos para tomar ações de militância, seja no âmbito jurídico ou de outras mobilizações, de forma a barrar esse constante recrudescimento do autoritarismo no Brasil. As liberdades de todas as pessoas estão em jogo. O exercício da imprensa está em jogo. O futuro da Internet no Brasil está em jogo. E a defesa da criptografia é, sem qualquer sombra de dúvidas, uma linha de batalha fundamental nessas defesas.

2 Comentários

  1. Fred Guth

    Outra aspecto dessa questão é o autoritarismo da decisão. WhatsApp não é um serviço de telecomunicações perante a lei brasileira, portanto, não tem nenhuma obrigação legal de manter metadados sobre as comunicações, muito menos de manter cópia das comunicações.

    Ainda que fosse, seria errado prejudicar milhões de pessoas para forçar uma determinada posição da empresa. É como fechar os Correios porque um juíz de primeira instância quer saber se uma determinada pessoa mandou uma carta para determinada outra pessoa. Quando se traz analogias com serviços não tecnológicos é mais fácil para mais pessoas entenderem o absurdo da decisão.

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  2. Anders Bateva

    “Na prática, isso só pode ser feito proibindo criptografia ou fazendo acordos por baixo dos panos com as empresas de tecnologia para que elas insiram backdoors em suas aplicações para monitoramento constante por parte da polícia.”

    Não, a ideia não é nem proibir por inteiro, nem fazer um acordo oculto. O que o ministro disse é que a ideia é obrigar a empresa a ter uma sede no Brasil, e assim poder “tecnologicamente” entregar os dados dos brasileiros.

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