por Smári McCarthy, ativista e um dos membros fundadores do Partido Pirata Islandês:

“O encontro do NetMundial foi realizado em São Paulo, Brasil, durantes os dois últimos dias. Por diversas razões, não pude estar lá presencialmente, mas participei através do hub para participação à distância de Londres. Esses hubs provavelmente foram a melhor coisa do NetMundial, permitindo que as pessoas com problemas geográficos como eu ainda assim fornecessem suas opiniões nas discussões.

Tirando esse pequeno aspecto consolador (apesar de haver software proprietário da Adobe no meio), o NetMundial foi realmente ruim. A sessão de abertura atrasou excessivamente por conta da falta de organização e de uma das mais severas procissões de bajulação coletiva que já vi. Depois disso, as coisas entraram num rumo que parecia razoavalmente produtivo, mesmo com a usual trolagem nos processos feita pelos chineses e russos, e com toda a baboseira de sempre da máfia do copyright e das megacorporações.

Apesar disso, ainda parecia que o resultado final poderia ser útil, algo indicado pelo fato de que os estados estavam ficando um tanto incomodados com os hubs de participação remota, que consistiam basicamente de atores da sociedade civil. Não que os governos não tenham sido convidados – eu adoraria ver alguém de um ministério de qualquer coisa do Reino Unido conosco no hub. Mas isso obviamente não aconteceu.

Não importa como estavam parecendo boas as coisas ontem, o documento final foi arruinado, deixando como resultado um texto que consistia apenas de vagueza sem propósito algum. O evento foi cooptado com sucesso pelas pessoas que não queriam dizer nada de importante sobre o quer que fosse.

Particularmente falando, o documento simplesmente não toca nos dois tópicos principais da conferência: neutralidade da rede e vigilância estatal indiscriminada. Ele dizia que a neutralidade da rede seria algo a ser discutido melhor e que a vigilância deveria apenas ocorrer de acordo com leis de direitos humanos. Nenhuma condenação. Nenhuma afirmação mais forte. Nada. Toda a conferência foi um desperdício de tempo.

SENDO REALISTA

Obviamente, muitos haviam previsto isso. Mais especificamente, havia uns poucos artigos que sugeriram que o NetMundial não seria o local correto para uma discussão. Milton Mueller sugeriu não deveria ser confundida a regulação da Internet com a regulação da NSA. Eu concordo até certo ponto com esse sentimento, mas o argumento cai quando ele assume que governância da Internet não possui relação alguma com a governância da espionagem. Isso é equivalente à ideia de que a governância de mecanismos multilaterais de comércio pela OMC não tem nada a ver com o confisco e destruição de mercadorias em trânsito. É tomar o todo por uma parte. Acredito que o termo pra isso seja “homomeria”.

O que quer dizer que um encontro internacional sobre governância na Internet não é um local menos adequado que a ONU, por exemplo, para que se discuta como regular a espionagem, sendo igualmente adequado para que algo seja feito concretamente sobre o assunto. Na verdade, pode ser um local ainda mais apto, já que, teoricamente, é mais provável encontrarmos participantes que efetivamente sabem do que estão falando nesse tipo de encontro, e representantes da parte da sociedade que é realmente afetada por essas atividades (o avatar daquilo que é chamado no direito comum de “homem médio”, reasonable man).

O problema é que o NetMundial não for proposto inicialmente como um encontro tão abrangente sobre governância na Internet, mas como sendo digno apenas de lidar com a questão da vigilância em massa. Mas não foi o caso. Em parte, porque as pessoas permitiram gestos substanciais da parte de Fadi Chehadé de um lado, e, do outro, que o governo dos EUA mudasse o rumo e o foco do evento para longe de uma solução para o problema atual mais grave, para que ficasse discutindo ad nauseam questões que deveriam ter sido mantidas separadas ao menos até o próximo IGF (Fórum de Governança da Internet), a saber: a transição da IANA (Autoridade para Atribuição de Números na Internet). E apesar de admitir que o controle da IANA é certamente parte do problema quando o assunto é a hegemonia dos EUA sobre a Internet, é uma questão separada por não contribuir de qualquer forma para as atividades diárias da NSA, do GCHQ ou de quaisquer outros espiões por aí.

A melhor maneira de destruir um encontro é expandindo seu escopo.

Seria bom ver um pouco mais de realismo nas relações internacionais, mas essa visão particular é limitada.

E AGORA?

Agora ficamos com o que foi realmente obtido durante o NetMundial. Foi um encontro interessante de mentes em alguns aspectos, com alguns discursos bastante fortes vindo de Nnenna Nwakanma, Vint Cerf, Milton Mueller, Roy Singham, Michał Woźniak, Ola Bini e de uma pessoa que representava o governo indiano cujo nome não me recordo. Houve alguns outros, mas, em grande parte, o evento consistiu de adultos desperdiçando tempo e todo um grupo de pessoas sendo diretamente misantropas.

Ao contrário de muitas pessoas, eu gostei das observações feitas pela pessoa representando o governo da Índia. Porque ela estava tocando numa questão essencial apesar da maneira razoavelmente desajeitada. Ficou pedindo esclarecimentos sobre o tipo de documento que seria produzido no final – se seria um resumo feito pela presidência do encontro ou um documento de “consenso”. A natureza do documento é importante no sentido de como ele é representado após o evento, mas, além disso, se é para ser apresentado como um consenso de qualquer tipo (o que certamente será feito), é muito importante que o conteúdo do texto esteja em acordo com o que estava sendo dito no evento, o que não é o caso.

Mas, para mim, o maior triunfo veio no fato de que recebemos evidências bem concretas de que o governo brasileiro fará tanto quanto qualquer outro para resolver o problema da vigilância em massa, e de que a diplomacia pós-Snowden está num ponto no qual Carl Bildt ainda consegue subir num palco para falar besteira sobre liberdade na rede sem ser alvejado por verduras podres.

No geral, o NetMundial foi (talvez de forma previsível) uma farsa.

Nós precisaremos fazer algo melhor. As pessoas coordenando o OurNetMundial estavam fazendo um bom trabalho chamando atenção para os problemas reais. Talvez deva ser transformado em evento. Mas onde? Quando? Por quem? E como evitamos cooptação?
Essas perguntas e outras ficarão sem resposta por enquanto. Mas algo terá de acontecer.”

Texto original: http://smarimccarthy.is/blog/2014/04/25/netmundial/

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