[Opinião Pirata] Por que existem anarquistas no Partido Pirata?

abr 9, 2016 | Artigos e Publicações, Ativismo, Eleições, Notícias, Opinião PIRATA | 3 Comentários

por galdino

fonte da imagem: http://www.welt.de/politik/wahl/berlin-wahl/article13608452/Piratenpartei-erreicht-vor-Berlin-Wahl-neun-Prozent.html

ANARQUISTAS E PARTIDOS

“O partido é uma mão com milhões de dedos, apertada num enorme punho”, disse o poeta Maiakovski, morto ao senti-la morta, a Revolução de Outubro. “Furacão de vozes unidas”, o partido, sua idéia e experiência, é visto por muitos como algo antagônico ao anarquismo, associado geralmente a realização política individual, seu motivo. Nós, militantes de uma organização anarquista, que poderia ser chamada por Bakunin, Makhno, Malatesta, Durruti, entre tantos camaradas vivos na idéia libertária, como um “partido anarquista”, queremos aqui intervir nesse debate tão importante dentro do anarquismo, explicando porque nos vemos e nos preparamos como um partido, ainda que prefiramos usar outro nome, o de organização política de minoria ativa” (Documento de Fundação da Organização Anarquista Terra e Liberdade).

Para quem estranha a ideia de partido anarquista, esse é um exemplo que mostra justamente que se trata ali de um partido mas que há preferência por outra forma de identificação. Que fique bem claro que não falo de algo aqui que diz respeito ao Partido Pirata (que não é um partido anarquista); apenas pensei em aproveitar o assunto e tentar desfazer um pouco uma imagem recorrente sobre a forma de organização de anarquistas através de um exemplo. Não sei se seria possível traçar com precisão os caminhos que levaram até a estranheza tão corrente atualmente envolvendo anarquistas e partidos. Muitos fatores parecem estar envolvidos: as associações entre partidos políticos em geral e partidos que participam do mercado eleitoral, entre anarquismo e desorganização, entre verticalidade e partidos políticos, dentre outras. No caso da primeira associação mencionada, cabe ainda lembrar que no Brasil mesmo podemos encontrar outros partidos “não-eleitorais” que se identificam como revolucionários.

Mas, novamente, esse não é um ponto que toca o Partido Pirata. Afinal, a maioria dos partidos pirata concorre em eleições (no âmbito legislativo e no executivo) ou se encaminha para isso. Não se sabe se essa vai ser a regra por muito tempo, já que meramente se replica os objetivos dos partidos pirata iniciais e a ideia de “hackear o sistema por dentro” ainda é o motor máximo da criação desses partidos pelo mundo. De todo modo, a ideia foi apenas lembrar que não há nada de estranho em anarquistas participando de partidos (inclusive compondo os mesmos com pessoas de outras correntes libertárias de esquerda, como aconteceu em diversos momentos históricos). E há até teórico que não tenha problema com anarquistas participando de alguns tipos de eleições, mas vamos deixar isso numa nota por conta do nível de polêmica envolvido*. Já uma pergunta mais complicada de responder não é sobre anarquistas em partidos, mas sobre anarquistas (e outras pessoas que fazem parte do campo libertário de esquerda) em um partido explicitamente engajado em eventualmente participar do mercado eleitoral; pergunta que também vejo replicada com certa frequência por aí.

Uma das ideias fundamentais que impulsionou a criação dos primeiros partidos pirata é justamente uma das coisas que, se eternamente reproduzidas, dificultará que um partido pirata simplesmente resolva não competir na arena eleitoral (e alguém poderia argumentar que isso descaracterizaria completamente algo como uma “essência” ou um “espírito” de um partido nomeado “pirata”): abrir uma frente institucional, que atue preferencialmente no âmbito legislativo, para combater os mesmos inimigos do movimento pirata. Se as pessoas envolvidas com difusão livre de cultura e conhecimento são vítimas de leis cuja injustiça é alimentada por lobistas das grandes e velhas indústrias culturais, por que não eleger parlamentares que poderiam fazer frente a isso lá onde as leis são criadas e modificadas? Já o nome pirata foi mais imposto do que escolhido: quem definia “pirata” era quem montava uma frente de combate a essa nova versão de um antigo terror. “Antipiratbyrån” era o nome, precisou só cortar o “Anti” para que surgisse algo que podemos chamar de “movimento pirata”. Esse espaço aberto também possibilitou a criação de uma frente institucional associada ao mesmo movimento.

Apesar da valorização da inovação e da experimentação, característica fundamental dos partidos pirata pelo mundo, ainda se segue esse mesmo modelo. Dadas diversas características desses movimentos caracterizados como “pirata” e essa valorização, poderíamos esperar outras formas de entender um partido pirata no futuro; mas, por enquanto, segue-se o molde tradicional. Mesmo assim, são vários os elementos que podem atrair ao menos as pessoas com algum pé no anarquismo ou em outras correntes libertárias: horizontalidade e colaboratividade como princípios fundamentais, a defesa do ativismo hacker, a recusa da política representativa em favor de formas diretas de gerenciamento dos recursos e dos rumos de uma sociedade. Talvez até mesmo o internacionalismo. A libertação da cultura, da informação e do conhecimento dos mais variados tipos de aprisionamento também aproximam as pessoas do partido e o campo libertário. Mas esses são exemplos de coisas que podem explicar uma simpatia, uma disposição maior com um partido “eleitoral”, até a abertura de um diálogo com intuito de construir algo em conjunto com membros do Partido Pirata. Provavelmente seja algo longe ainda de explicar a presença de anarquistas e pessoas libertárias de esquerda em geral (como costuma se identificar este que lhes fala) dentro do partido, e não do lado de fora exercendo a função “simpatizante”.

TÁ, MAS POR QUE EXISTEM ANARQUISTAS DENTRO DO PARTIDO PIRATA?

Se desconsiderarmos momentaneamente o fator ‘competir no mercado eleitoral’ (e outros semelhantes) e pegarmos o programa político do partido (http://partidopirata.org/documentos/programa), há elementos de sobra para agradar pessoas libertárias. Por exemplo: “Entendemos, como muitas outras pessoas, que a via eleitoral é apenas uma alternativa, não sendo solução primária ou exclusiva dos mais variados problemas de nossa sociedade, principalmente dos mais profundos. Como partido político a ser registrado oficialmente, temos a pretensão de provocar alterações na sociedade a partir da atuação institucional, mas compreendemos os limites dessa atuação e buscamos outros meios, assim como dialogamos com movimentos que não possuem interesse na inserção na política institucional. Defendemos os movimentos autonomistas e a autogestão social como forma legítima de organização popular. Queremos o fortalecimento do Poder Popular independente do Estado e de partidos, empresas, instituições religiosas, e ONGs”. Claro que a diferença de entendimento crucial entre pessoas que lançam candidaturas em eleições e anarquistas em geral vai além de como se compreende as possibilidades de atuação institucional no estado atual de coisas ou de como se relaciona esta atuação a outros tipos de ação política. Uma discordância mais fundamental está na admissão mesma da via eleitoral como legítima. E aí surge a questão: o que fazem pessoas que discordam profundamente dessa admissão em um partido que eventualmente vai lançar candidaturas legitimando de alguma forma todo o processo eleitoral? E disso surge outra questão mais básica: participar de um partido (e até se associar formalmente a ele) que participa parcialmente de eleições significa que cada pessoa dentro dele está individualmente legitimando essas eleições?

A legitimação de algo envolve muito de subjetividade. Não participamos de uma sociedade profundamente marcada por eleições? É possível não legitimar de diversas formas incontornáveis esse traço constitutivo de nosso modelo de sociedade? Outros exemplos que abrangem toda a vida em território brasileiro poderiam ser usados no lugar de eleições. Romper radicalmente com toda a ordenação da sociedade brasileira parece ser a única saída para não alimentar, legitimar, ajudar na manutenção de coisas que um dia queremos ver num canto escuro da memória, como um sonho ruim que há muito se dissipou. Mas essa perspectiva acaba dependendo de uma visão específica sobre o que significa dar legitimidade a algo. Ou até sobre os mais variados graus disso e quais deles estão no escopo do admissível e perdoável. Não me sinto particularmente apto a julgar as coisas nesse contexto. A questão da coerência é um campo minado onde as pessoas apontam para uma mina com um braço e perdem o outro em alguma explosão. Quem julgava ser incoerente a participação em um partido que vai se dedicar parcialmente ao mercado eleitoral (seja lá de que forma) no futuro com uma visão libertária de mundo (e com a forma de vida associada), já saiu do partido quando se decidiu esse encaminhamento. Talvez as que ficaram sejam aquelas que guardam alguma pontinha de esperança no potencial transformador do Partido Pirata no que diz respeito às velhas instituições, mesmo que suas ações estejam voltadas para outras coisas. Eu particularmente não tenho problema algum em ajudar alguma pessoa que trabalhe comigo no partido com contribuições para um projeto eleitoral que me pareça sincero (por mais que eu não tenha adotado esse caminho para me dedicar politicamente), apesar de ser algo que faria com um grande ceticismo quanto a questões que vão além das intenções dessa pessoa.

Mas se algumas pessoas preferem se dedicar a outro tipo de construção política, fica a questão: o que há no programa político do Partido Pirata e nas cláusulas pétreas de seu estatuto a se oferecer a essas pessoas? Aqui podemos listar diversas coisas: o ativismo hacker; a defesa da economia solidária e sua “[…] diversidade de práticas econômicas e sociais organizadas sob a forma de cooperativas populares, associações, clubes de troca, empresas autogestionadas, redes de cooperação […]”; “[…] a descentralização, a democracia líquida e a autogestão como alternativas à democracia representativa […]”; a defesa de rádios comunitárias e também das livres; “[…] estimular a comunicação via redes alternativas também, redes autônomas que empoderem as pessoas ponto a ponto, peer-to-peer”; a horizontalidade como cláusula pétrea; a “[…] transformação do sindicalismo partidário-estatal brasileiro em associativismo laboral autogestionado e livre da tutela do Estado”; a defesa de movimentos de moradia e seu direito de ocupar espaços abandonados e sucateados sem repressão por parte do Estado como resposta; “[…] a criação de uma cultura de segurança coletiva e de solidariedade, diminuindo a pressão social sobre intervenções policiais repressivas para redução de situações de conflito, fazendo da segurança pública um compromisso da própria sociedade civil”; “[…] a experimentação de processos de ensino-aprendizagem descentralizados e livres”; defesa de “[…] redes digitais, a descentralização e o midiativismo como alavancas para a democratização das comunicações” e o fortalecimento de mídias livres e independentes.

Analisando esses e outros itens que constam em documentos oficiais do partido, podemos tirar um campo de atuação política que coincide de forma razoável com a ação libertária, desconsiderando a parte dessa ação voltada à promoção do anarquismo ou qualquer outra vertente da esquerda libertária e à construção de organizações que sigam essas ideologias exclusivamente (apesar de não haver nenhuma proibição ou desestímulo quanto a isso). Poderíamos dizer que o Partido Pirata no Brasil (aqui não me arrisco a falar tanto sobre os outros, embora eu saiba que existem anarquistas em vários deles) contempla dois grandes blocos de teoria/prática (na verdade, considero toda teoria como prática, mas essa é outra discussão): um “reformista”, e outro “libertário”. Nesta altura do texto, seria desnecessário dizer qual me parece mais interessante e frutífero. Mas o fato é que o partido abarca ambos blocos sem hierarquizar. Eu posso afirmar isso sem arriscar uma interpretação própria pois, como redator de diversos trechos do programa, essa foi justamente a ideia-base da construção textual.

O fato é que, no momento de reformarmos nosso programa, esses dois grandes blocos estavam lá e suas contribuições precisavam ser costuradas de acordo com alguma interpretação. Apesar do primeiro tópico (possivelmente) dar a entender que defendemos uma espécie de “etapismo” reformista, a lógica é mais a de cursos paralelos de alteração da sociedade. O ideal de democracia plena serve de horizonte para a atuação reformista, mas as reformas não são compreendidas como passos necessários para o ideal (algumas delas talvez sequer tenham alguma coisa a ver com ele). Se não compreendemos a via institucional como exclusiva nem primária, não há como assumir tão facilmente que a construção de uma sociedade radicalmente diferente vá ter alguma relação causal com o que é feito através dessa via. Mas há a defesa de modelos híbridos, de experimentação, de reformas constantes, tudo isso no sentido de ampliar o poder das pessoas sobre as instituições, embora sejam essas mesmas instituições as responsáveis por devorar parte do poder popular.

Ou seja, assim como as pessoas do partido podem se dedicar a lançar candidaturas, elaborar projetos de lei, defender interesses e pautas de movimentos sociais caso eleitas, dentre outras coisas básicas que esperamos de um partido que pretende atuar de forma progressista no âmbito institucional (além de possíveis coisas que vão além do padrão progressista, como tentativas de mudança estrutural), elas também podem contribuir na construção e manutenção de ocupações, levar adiante projetos de rádio libertários, desenvolver redes alternativas e livres de comunicação, promover educação libertária e popular em locais desprezados pelo Estado, montar cooperativas e participar de redes de economia solidária, difundir práticas de autogestão nos mais variados espaços, promover ação direta, e todo tipo de coisa relacionada a trechos de nossos documentos como os expostos no parágrafo anterior (mais estranho que anarquistas num partido pirata, só a boa convivência entre esses dois grandes campos na mesma organização?). O tipo de coisa que anarquistas costumam fazer, e dentro de um modelo de organização interna que costumam adotar (com algumas diferenças básicas). Tudo isso, claro, sem recorrer às práticas oportunistas já conhecidas nos meios ativistas. Não é só de “hackear o sistema por dentro” que deve viver o Partido Pirata.

MAS É POSSÍVEL “HACKEAR O SISTEMA POR DENTRO”?

Cabem aqui algumas considerações sobre o “reformismo” pirata. Como já mencionado, a ideia de “hackear o sistema por dentro”, “inserir um Cavalo de Tróia no sistema” ou qualquer ideia parecida, ainda é o que move as pessoas ao redor do mundo no sentido de criar partidos pirata. A promessa de algo “revolucionário” chega a ser mais presente em algumas narrativas do que a antiga ideia de montar uma frente parlamentar para um movimento que não se resume a partido. Eu discordo da qualificação do que o partido pode oferecer a partir do Estado como “revolucionário”; isso me parece um exagero de quem já não vê mais abertura para transformação da sociedade que não seja a da urna. Por outro lado, não se trata de um mero progressismo que visa manter o sistema atual porém de forma cada vez mais democrática/democratizada. Historicamente falando, faz pouco sentido chamar o que temos de “democracia representativa”. Os esquemas de representação estavam em vigor muito antes de ressuscitarem o termo “democracia” como algo positivo, ou de aprovarem a universalidade do voto. Representatividade não diz respeito a uma característica de nossa democracia, mas é o próprio sistema no qual estamos (e a possibilidade de democratizar cada vez mais é a característica das mais importantes). Marcar uma sociedade como “democracia representativa” ou somente “democracia” têm diversas funções e objetivos, inclusive manter credibilidade diante de instituições financeiras e outros tipos de organizações internacionais. Assim, o que o partido pretende modificar é justamente o núcleo de nosso sistema: a representação.

Mas não vejo isso como sendo suficiente para se classificar um sucesso desse tipo de empreitada como “revolucionário”. Nem o programa do partido coloca isso como sendo ponto final de uma mudança radical na sociedade. Que o nosso sistema representativo possa ser modificado a ponto de se apresentar como algo híbrido (segundo a concepção em nosso programa que faz girar qualificações em torno do substantivo “democracia”), é algo que aponta para isso. Se isso for possível, será interessante ver o que poderá surgir a partir de tais mudanças. Mas eu ainda acho legítimas as pretensões mais modestas de ocupar lugares como parlamentos e prefeituras. Como se diz por aí, é melhor ter uma pessoa moderada/progressista sentando nesses tronos do que neonazistas (como está ocorrendo cada vez mais na Europa). Claro que existem pontos fundamentais que não mudam a vida das pessoas debaixo do peso do Estado, mas, se absolutamente nada fizesse diferença alguma, as pessoas mais desprivilegiadas não insistiriam tanto no voto. O problema parece ser quando as pessoas (e parte da esquerda brasileira se envolve profundamente com isso) endeusam reformistas quando deveriam constatar que essas pessoas não fizeram mais do que a obrigação de alguém que se coloca como progressista. Ou quando depositam toda sua esperança e fé nessas figuras, indo parar posteriormente no buraco cada vez mais fundo do “menos pior”/”voto crítico”. Um Mujica pode perseguir movimentos políticos e adotar posturas antitrabalhistas severas, mas ainda assim ser louvado como o exemplo da América Latina e rei do carisma socialista, com um fã-clube que lota espaços consideráveis com cobertura dos marketeiros do pós-rancor.

Seria tudo mais saudável se: 1) essas grandes figuras públicas eleitas fossem compreendidas como funcionárias escolhidas para desempenhar uma série de funções, e não como personificações de nossas carências; 2) elas fossem mais valorizadas pelo modo como usam as instituições a favor de movimentos sociais ou das parcelas mais precarizadas, de forma a estimular que mandatos fossem cada vez mais deixados a serviço de quem está embaixo e cada vez menos usados para ganhar curtidas no Facebook; 3) se o entendimento das limitações desses cargos fosse mais amplamente promovido de forma a estimular outras vias de construção política, já que tanto abusam de desculpas envolvendo as possibilidades restritas de atuação. Claro que algumas pessoas podem dizer que qualquer coisa nesse sentido é alimentar ainda mais o Estado, mas não é como se ele estivesse prestes a morrer. Talvez fosse mais confortável para muitas pessoas se dedicar a construções a partir de perspectivas libertárias se não fosse a preocupação constante com a atrocidade mais recente aprovada na câmara de qualquer coisa. Eu diria que é bom que tenha gente tentando segurar as coisas um pouco nesses espaços institucionais, mas é melhor ainda que isso seja compreendido como um conjunto de obstáculos impedindo a precarização máxima de quem tá debaixo das oligarquias, e não como a via de salvação dessas pessoas. Dito isso, não sei se existem condições de viabilizar isso de “hackear o sistema”, mas é uma possibilidade e que deve ir além do que tem sido colocado como opção até agora pela esquerda eleitoral.

*********************************

Para concluir, é preciso dizer que este texto não é uma justificativa completa para a presença de pessoas libertárias de esquerda no Partido Pirata, pelo simples fato de que algumas questões subjetivas importantes não são de meu conhecimento. O mais relevante aqui era tentar fazer algum sentido de algo que ocorre e que causa estranheza em muitas pessoas. Existem pessoas que defendem que o partido seja uma espécie de abrigo institucional para o ativismo. Acho que isso vai um pouco na direção do que coloquei como sugestão de uso dos mandatos. Outras defendem que o partido entre nas disputas eleitorais para causar perturbações e dissensos e não necessariamente buscar bons resultados em urnas. Existem pessoas que defendem o municipalismo libertário de Bookchin. E existem as que querem entrar pelo Cavalo de Tróia. No contexto da ação eleitoral, a pluralidade que existe no partido encontra suas limitações: é preciso definir um número pequeno de estratégias por eleição ao mesmo tempo em que se precisa definir diretrizes razoavelmente estáveis para atuação de pessoas eleitas pelo partido.

Por outro lado, deixando que as pessoas do campo “reformista” cuidem das questões eleitorais com a contribuição eventual de pessoas dedicadas à atuação orientada por perspectivas libertárias, cada bloco pode seguir em diante e paralelamente ao outro de acordo com seu conjunto de teorias/práticas, tentando construir um mundo melhor com base no que poderíamos chamar “ideologia pirata”, cada um da sua maneira, de acordo com sua disponibilidade e seus interesses e capacidades. E a “ideologia pirata” seria o que identificaria pessoas dos diferentes blocos, de forma que não teria sentido mandar um bloco inteiro para outro partido ou organização para que anarquistas fiquem somente com anarquistas, por exemplo. O Partido Pirata atualmente é um espaço aberto a esse tipo de diversidade ideológica e pluralismo de métodos/ações/teorias, e existem anarquistas nele porque essas pessoas encontraram um ambiente acolhedor e produtivo para elas lá dentro, de acordo com todos os pontos levantados pelo texto.

 

 

 

* Murray Bookchin, em “Municipalismo Libertário”: “É curioso que muitos anarquistas que se entusiasmam com qualquer chácara coletivizada no contexto de uma economia burguesa encarem com desgosto uma ação política municipal que comporte qualquer tipo de eleições, mesmo se estruturadas em torno de assembléias de bairro e com mandatos revogáveis, radicalmente democráticos. Se anarquistas viessem a integrar conselhos comunais, nada obrigaria a que a sua política se orientasse para um modelo parlamentar, sobretudo se confinada ao âmbito local, em oposição consciente ao Estado e visando a legitimação de formas avançadas de democracia direta. A cidade e o Estado não se identificam”. Já no texto “Para um Novo Municipalismo”, Bookchin listou algumas coisas que, em sua perspectiva teórica, seriam perfeitamente adequadas ao anarquismo e deveriam ser realizadas na esfera municipal por uma via institucional/eleitoral: “[…] ajudar a organizar uma assembléia de freguesia, a avançar a sua consciência numa linha libertária, apresentar reivindicações sobre a revogabilidade e a rotatividade dos delegados escolhidos pela assembléia, fazer distinções claras entre formulações de políticas e coordenação administrativa, recusar o burocratismo civil em todas as suas formas, educar a comunidade para o coletivismo e a ajuda mútua e, finalmente, encorajar relações confederais entre assembléias populares e municipalidade e entre municipalidades, em desafio aberto ao estado nacional”.

3 Comentários

  1. GIO

    O que levaria anarquistas de ação direta em confiar nos integrantes do partido? e se eles são políticos, por que eles não seriam como os outros?(pelas promessas? todos políticos prometem coisas). continuo com o pé atras a instituições que atuam com o estado (Partido), continuo na ação direta ao Estado, sabotagens, boicotes, manifestos, protestos, confrontos, divulgação do anarquismo, e me organizar a outros anarquistas autônomos. temos que levar em consideração que por ser um partido, pode ser usado por oportunistas, não afirmo que o Partido Pirata não esteja dentro de movimentações anarquistas, mas temos que manter o olho sempre atentos. Salve Anarquismo!! Manaus

    Responder
  2. Um Socialista Libertário

    O autor confundiu alguns conceitos básicos da literatura clássica anarquista, como por exemplo a ideia do “Partido”.
    Para Bakunin, Malatesta, Makhno e Durruti o partido nada mais era do que uma agremiação de militantes, uma fraternidade de militantes dedicados, com um certo nível de aproximação ideológica e que não deve ser confundido em hipótese alguma com a disputa e conquista do aparelho estatal burguês. Utilizar esse exemplo para validar a posição do partido pirata é, ou uma deturpação, ou falta de materialidade da questão.
    Sobre a ideia do partido atender tanto à posição revisionista como libertária, me parece um abandono claro das posição tidas como libertárias no próprio nascimento do movimento anarquista, aqui colocado enquanto caldo do rompimento da Internacional dos Trabalhadores e a formação posterior de duas Internacionais de matrizes opostas: A Internacional Comunista, que à partir de sua segunda fundação se foca diretamente na questão mais partidária que Marx já tentava colocar em prática no seio da AIT, e a Internacional Autonomista, que foi a continuidade das sessões da AIT que sustentavam a ideia da autonomia, do federalismo, da horizontalidade, enfim, das ideias e práticas libertárias.
    Aqui é importante se pautar que enquanto a via tida como reformista teve como foco a conquista do aparelho estatal burgues e sua própria deturpação nesses moldes (não foi por acaso que o próprio Lenin veio mais tarde a romper com a segunda internacional na tentativa de se recuperar uma “matriz revolucionária” da social democracia que já se encontrava em um estado de putrefação, embora muito mais avançada que a social democracia hoje presente na esfera institucional que temos), a segunda via teve como foco o trabalho de base, a organização popular e a criação de auto-instituições de oposição às instituições burguesas. A Espanha Revolucionária de 36 só pôde atingir tal grau de radicalidade e de experimentação realmente socialista e libertária não por expressão do acaso ou por mera espontaneidade, mas por uma ação de base de mais de 4 décadas de ação e militância anarquista, de construções posteriores dessas sessões espanholas da AIT.
    É problemático a tentativa de síntese das posições adotando-se uma estratégia que beneficia inteiramente uma em oposição à outra. A união da minhoca com ave ocorre, justamente, no estômago da segunda. Ao sintetizar as posições e as diferenças práticas, de atuação e ideológicas, o Partido Pirata deixa claro a sua preferência por uma delas. Ao sustentar Bakunin, Makhno, Malatesta e Durruti sem, no entanto, sustentar também suas críticas às ações institucionais e ideia do partido enquanto conjunto de individuos para a ação parlamentar, o autor cria um verdadeiro espantalho de tais personalidades como que para sustentar suas posições individuais e uma lógica revisionista do anarquismo.
    Se não nos atentarmos para a materialidade histórica do anarquismo, para a construção factual, estaremos fadados à repetir o sepultamento das experiências de fato libertárias e autogestionárias da pior forma possível: em nome justamente da liberdade e da autogestão, esvaziadas pela ação estatal.

    Obs: Fui um grande simpatizante do Partido Pirata quando mais novo e tendo desconhecimento sobre o anarquismo justamente por sua imagem. De fato, sempre me pareceu algo muito anarquista. No entanto, tal erro se deu pela minha interpretação equivocada do que de fato era anarquismo, o que para mim era tido muito mais como uma visão niilista positiva do que de fato socialista libertária. Vendo algumas posições de companheir@s do partido pirata de fora do Brasil, onde muitos sustentam o “não direita, não esquerda” e já estão totalmente entregues ao jogo institucional, me parece que o Partido Pirata é apenas uma revisão da ala reformista sob signos libertários, mas nada mais do que isso.
    Por outro lado, por não se constituir enquanto uma organização política formal no Brasil, muitos companheiros conseguem ainda manter um discurso mais próximo de um anarquismo de fato e a sintetizar suas posições enquanto partido com outras posições partidárias como a da OATL e da FARJ, por exemplo. O que devemos nos atentar é ao limite da ideia partidária NOS PARTIDOS PIRATAS.
    Se o Partido Pirata se manter na autonomia à esfera institucional, e em combate à ela, certamente manterá muitas de suas expressões tidas como “libertárias” atuais. Se, por outro lado, cede à institucionalidade e se forma enquanto organização parlamentar, institucional, a materialidade suprirá tais expressões em detrimento da ação institucional, ou, como gostam de dizer, do “hackear o sistema por dentro”, ao invés de criar auto-instituições de embate direto ao sistema.
    Não vamos nos esquecer que, muitas vezes, ao hackearem, os hackers acabam também auxiliando o sistema comprometido através da correção de suas falhas e o potencializando para enfrentar possíveis ameaças futuras. Tal é, também, a capacidade de manutenção do capitalismo. É na adoção e sintetização dos elementos opositores à ele, que o capitalismo consegue se sustentar e se aperfeiçoar.
    Que o Partido Pirata do Brasil não siga o mesmo erro (embora eu tenha minhas dúvidas de que isso possa ser possível, uma vez que sua lógica partidária já é importada de países onde essas expressões institucionais se encontram em andamento).
    ——————————————————————————–

    Espero que permitam o comentário no site, em nome da livre troca de ideias e para que possamos elevar o nível do debate e fortalecer o fluxo de informações.

    Responder
    • victor

      Olá,
      o uso da citação do documento de fundação da OATL teve justamente o objetivo de mostrar que a ideia de partido não pode ser reduzida à ideia de partido eleitoral. Não há confusão alguma, a ideia era justamente aproveitar o assunto para fazer esse esclarecimento (é difícil conversar sobre “anarquistas em partidos” sem falar de “partidos anarquistas”). Que o partido pirata não tenha nada a ver com isso, é algo afirmado duas vezes nos dois parágrafos seguintes à citação. O partido não é anarquista, não tem nenhuma pretensão de ser, e não temos obrigação alguma com instituições anarquistas, mesmo que nossa forma de organização seja inspirada tanto nos anarquismos como em outras coisas.

      Outra coisa importante é que o partido não é síntese de dois campos antagônicos, digamos assim. Existe uma diferença entre síntese e abertura à diversidade, e não demandamos de nossas pessoas associadas que assumam qualquer posição sintetizada. Se existem anarquistas no Partido Pirata, é simplesmente porque essas pessoas não têm problema em participar de um mesmo projeto onde se encontram também pessoas que acreditam em eleições. Além disso, as pessoas anarquistas e libertárias em geral podem construir (e de fato constroem) outras coisas fora do partido. O PIRATAS não é uma unidade, é uma plataforma de encontro de pessoas que fazem política a partir de diferentes perspectivas, mas que podem trabalhar em projetos comuns. Espero que esse comentário permita entender melhor como as coisas funcionam e desfazer qualquer mal entendido sobre a nossa relação com os variados anarquismos. Repetindo: a ideia do texto é tentar explicar por que existem tantas pessoas anarquistas em um partido explicitamente não-anarquista e com finalidades eleitorais ainda por cima (mesmo que o partido não obrigue ninguém a se envolver com projetos eleitorais levados adiante por pessoas associadas ao PIRATAS).

      Responder

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Pular para o conteúdo