A Guerra Híbrida dos EUA no Brasil

nov 4, 2018 | Destaque, Notícias | 0 Comentários

Táticas militares exóticas do mundo contemporâneo?

artigo original aqui – traduzido por M. Mordekai

Andrew Korybko deu uma entrevista exclusiva sobre Guerras Híbridas à TUTAMÉIA – Brasil para promover a edição traduzida para o português de seu livro de 2015 sobre o assunto. Abaixo está a entrevista completa, traduzida para o português.

 

1. O que é Guerra Híbrida?

Desde a publicação original de meu livro em 2015, expandi a definição para incluir o seguinte:

“Guerras Híbridas são conflitos de identidade provocados externamente, os quais exploram diferenças históricas, étnicas, religiosas, socioeconômicas e geográficas que ocorrem por meio de estados de trânsição geoestratégica, através da transição em fases, de “Revoluções Coloridas” (ou seja, revoluções contra Governos que não tem alinhamento ideológico com os Estados Unidos e a consequente instauração de governo pró-cidentais) para Guerras Não Convencionais, objetivando perturbar, controlar ou influenciar projetos transnacionais e multipolares de conexão de infraestrutura, através de Alteração de Regime, Mudança de Regime, e/ou Reinicialização de Regime (no original, R-TOR: Regime Tweaking, Regime Change, Regime Reboot).

Em resumo, o que isto significa é que países como os EUA tomam vantagem dos pontos vulneráveis na identidade preexistente de um alvo para transformar em arma uma, algumas, ou todas as seis diferenças acima citadas, de modo a provocar um movimento de protesto em grande escala, que possa então ser apropriado, ou por eles direcionado para propósitos políticos. Fracassos nesses movimentos fazem com que alguns dos participantes acabem voltando-se ao terrorismo, táticas de guerrilha, e outras formas de conflito não convencional contra o Estado. Tornou-se frequente, pelo menos no Hemisfério Oriental, que esses fenômenos manufaturados tenham o efeito de diminuir a viabilidade de um dos muitos projetos de Rota da Seda da China (uma rota comercial de acesso ao mercado consumidor chinês), ao coagir o estado alvejado para que aceite compromissos políticos (“Alteração de Regime”), um novo governo (“Mudança de Regime”), e/ou reforma constitucional “descentralizada” (“Reinicialização de Regime”), que às vezes pode levar a uma “balkanização”.

2. Seu livro descreve Guerras Híbridas como “caos gerenciado”. Como isso se constrói?

Através do estudo detalhado da sociedade do Estado alvo e das tendências gerais da natureza humana (auxiliadas por antropologia, sociologia, psicologia e outras pesquisas), é possível obter uma noção de como tudo se opera no mundo “naturalmente”. Armados com esse insight, os praticantes de Guerra Híbrida podem prever com precisão quais “botões apertar” através de provocações pré-planejadas, para incitar reações esperadas de seus alvos, tudo com a intenção de perturbar o status quo através do início de processos autossustentáveis de desestabilização manipulados externamente. O objetivo final é produzir o maior efeito possível com o menor esforço possível, explorando então os eventos rápidos e incerteza resultantes para realizar seus próprios planos políticos.

 

3. O livro descreve os EUA como um propulsor desses movimentos. Por quê?

Os EUA têm interesses globais em razão de sua hegemonia global, que é bastante presente mas ainda assim está diminuindo. Décadas de experiência operando em todos os continentes dotaram os EUA de uma compreensão profunda da situação doméstica de praticamente todos os países. Não só é muito mais fácil para os EUA iniciar Guerras Híbridas do tipo que corresponde ao meu modelo, porém, mais importante ainda, os EUA têm a motivação para fazê-lo, o que é algo que muitos dos outros Grandes Poderes não têm, quando se diz respeito a países fora de suas “esferas de influência” regionais.

 

4. O Brasil tornou-se alvo de Guerra Híbrida após a descoberta do petróleo pré-sal?

Em meu ponto de vista, o Brasil foi alvo desde o momento em que Lula foi eleito, com seu deslocamento para a multipolaridade, mas a subsequente descoberta das reservas de pré-sal adicionou um novo e definitivo ímpeto à Guerra Híbrida dos EUA contra o Brasil, embora apenas porque alguns desses recursos seriam vendidos para a China. Se Lula tivesse feito um acordo com os EUA para provê-los com acesso irrestrito aos depósitos pré-sal e também permitisse a Washington usar isto como vantagem indireta no controle do acesso à China a esses depósitos, aí os EUA não teriam muita motivação para continuar uma Guerra Híbrida contra o Brasil, ou esta teria sido mais leve, ou teria levado mais tempo para se instaurar. Ao invés disso, graças à postura independente de Lula quanto aos depósitos do pré-sal e em muitas outras questões, ele e sua sucessora foram vistas como alvos “legítimos” pelos EUA, porque Washington temia que eles acelerariam seu declínio hegemônico no hemisfério, se não os impedissem o mais rápido possível.

 

5. O fato de que o Brasil participou ativamente do BRICS junto a Rússia, Índia, China e África do Sul foi também razão para ser alvo de Guerra Híbrida?

Sim, porém mais no sentido simbólico. Neste caso, minha opinião pessoal é de que o BRICS, embora seja uma plataforma bastante promissora, não chegou a alcançar seu potencial total, graças à rivalidade entre China e Índia, manipulada pelos EUA, o que impediu sua efetividade geral antes mesmo que a primeira fase da Guerra Híbrida no Brasil tivesse sucesso em depor a Presidenta Rousseff. A remoção de Dilma e o “golpe constitucional” contra o presidente sul-africano Zuma combinaram para encolher o BRICS à tríade original, o RIC, que em si é bastante dividida entre China e Índia (a despeito das declarações oficiais contrárias de seus governos), com a Rússia exercendo um papel de “equilíbrio” entre elas. Para todas as intenções e propósitos, o BRICS naõ existe mais de verdade, exceto como um clube de conversa anual, e uma memória de sonhos despedaçados para muitos.

 

6. O livro fala bastante sobre os casos da Síria e da Ucrânia e diz que esses modelos podem ser reproduzidos em outros lugares. Este modelo poderia ser reproduzido no Brasil?

Teoricamente, sim. Porém, não penso que seja tão provável, pois as dimensões de contrariedade à Rota de Seda na Guerra Híbrida, que formam a principal motivação destes conflitos cinéticos, são em sua maior parte aplicáveis ao singular ambiente operacional do Hemisfério Oriental (Afro-Eurásia), que é mais suscetível a conflitos de identidade externamente manipulados desse tipo. Isto dito, a engenharia social, precondicionamento político e as campanhas de guerra psicológica que formam a base das Revoluções Coloridas (a primeira metade não-cinética das Guerras Híbridas) são definitivamente reprodutíveis em todo o mundo, em especial na era atual das mídias sociais interconectadas.

 

7. O livro também lida com a “Primavera Árabe”. Analistas têm apontado que o Brasil tem sido alvo de uma Guerra Híbrida desde 2013, quando um estranho movimento começou a surgir no país, através da internet. Isso faz sentido?

Bastante, porque a primeira fase organizacional ativa das Guerras Híbridas de hoje em dia começa na internet, onde os praticantes do movimento usam a web para obter informações importantes sobre seus alvos antes de engajar-se com eles de forma direta ou indireta, através de campanhas informacionais com alvos que apelem mais efetivamente a seus interesses ou necessidades. Isto é cada vez mais descoberto através de análises de “Big Data”, como o que a Cambridge Analytica é acusada de fazer. Movimentos sociopolíticos começam a brotar online muito mais que nas ruas, como costumavam antes, porque as pessoas estão mais confortáveis em engajar-se através da conveniência da tela do celular, e no momento em que elas quiserem, o que é diferente do trabalho físico que era necessário em reuniões presenciais e atividades do tipo. Hoje em dia, tudo que eles têm de fazer é checar as últimas notícias compartilhadas num grupo de Facebook ou WhatsApp, e podem fazer isso quando tiverem vontade.

 

8. Ocorreu uma avalanche de fake news durante a campanha eleitoral, especialmente através de grupos do WhatsApp. Estamos sendo vítimas de uma Guerra Híbrida?

Sim, está acontecendo uma Guerra Híbrida bastante intensa no Brasil agora e isto afeta cada faceta da vida dos indíviduos, desde o que eles leem nas mídias sociais (informações reais, fake, ou manipuladas) até o que ouvem nas ruas. Players externos estão tentando precondicionar de forma bastante sutil o público nos últimos anos para que se voltem contra o Partido dos Trabalhadores, após a “Operação Lavajato”, que foi assistida pela NSA, operação essa que tomou “vida própria” através do modelo de ciclos de desestabilização autossustentáveis que descrevi antes. Isto forçou o Partido dos Trabalhadores a retroceder e defender sua integridade, o que por sua vez levou a uma reação ainda mais feroz daqueles que estavam tentando derrubá–lo. O Brasil está metido em Guerra Híbrida por tanto tempo agora, que não se consegue perceber que cada fragmento de informação acessado de uma forma ou de outra é conectado a esta campanha incessante.

 

9. Qual o objetivo desta Guerra Híbrida, e quem está por trás dela? Jair Bolsonaro?

Não acho que Bolsonaro tenha sido o progenitor desta Guerra Híbrida, mas ao invés disso, que as mentes por trás dela nos EUA já tinham um plano há muito tempo para moldar as condições sociopolíticas do país de tal forma que um candidato “cavalo negro” (termo mais comum na língua inglesa para um candidato eleito de forma inesperada ou que ascendeu subitamente) que poderia subir ao poder com facilidade, e então sistematicamente desmantelar tudo que o Partido dos Trabalhadores alcançou durante seu tempo no poder. A partir de uma perspectiva externa, observando e sabendo o que se sabe agora de antemão sobre a Operação Lavajato, a inteligência americana provavelmente concluiu muito antes que Bolsonaro seria o melhor candidato possível devido a seu histórico de pronunciamentos políticos controversos, que alinha-se com os interesses gerais americanos para com o país. Também ajudou o fato de que ele não foi envolvido em quaisquer dos escândalos anticorrupção dos últimos anos, sobre os quais os EUA teriam sabido de antemão, sabendo-se como a NSA participa da procura de “indícios” que então catalizaram a purga política no país.

Com o PT fora do poder e mesmo com muitos dos usurpadores e seus aliados tendo sido provados como igualmente corruptos, se não mais corrutpos ainda, o palco estava pronto para que o candidato “cavalo negro” entrasse em cena e capturasse a imaginação de muitos que foram precondicionados a odiar todo os políticos convencionais após a Operação Lavajato (e especialmente políticos do PT, que levaram a maior parte da culpa). Também buscam de modo cada vez mais desesperado que medidas drásticas sejam implementadas para salvá-los da onda de crimes, ou pelo menos dê a eles uma chance de luta para salvar-se, através da liberação das armas prometida por Bolsonaro. Meu ponto de vista é que os EUA trabalharam muito duro para facilitar a ascensão de Bolsonaro e estão ajudando-o em cada passo do caminho, algo que até mesmo ele pode não ter percebido antes, mas que agora quase com toda certeza deve estar ciente de forma direta, pelas próprias forças que consideram a probabilidade de sua vitória no segundo turno.

 

10. Qual a diferença do uso de Facebook e Whatsapp no contexto de Guerras Híbridas?

O WhatsApp é mais instantâneo e impulsivo, enquanto o Facebook é mais organizado e metódico. O primeiro é geralmente usado para o envio de pequenos fragmentos de informação e a rápida organização de multidões bem grandes, enquanto o segundo tem melhor uso em planejamento organizacional profundo e no contorle de multidões a longo prazo. Basicamente, são dois lados da mesma moeda, e caminham lado a lado quando se pensa no aspecto tático das Revoluções Coloridas.

 

11. O livro foi originalmente publicado em 2015. O que mudou desde a primeira edição? As Guerras Híbridas tornaram-se mais sofisticadas?

Como respondi na primeira pergunta, expandi e expliquei mais cientificamente a definição de Guerra Híbrida, incluindo seis das categorias identitárias mais populares que são alvejadas, bem como os objetivos de Alteração, Mudança e Reinicilização de Regime, que são objetivos finais importantes, os quais deve-se sempre ter em mente para melhor compreender toda a questão desses conflitos em relação a qualquer que seja o governo alvo. As táticas de engenharia social e precondicionamento político das Revoluções Coloridas (a primeira metade da Guerra Híbrida) foram reveladas como muito mais sofisticadas após o vazamento sobre como a Cambridge Analytica esteve colhendo e analisando dados de usuários de mídias sociais para obter uma percepção sobre-humana do que as pessoas nos países alvos estão interessadas, suas necessidades, e como melhor manipulá-las. Isto significa que o planejamento da Guerra Híbrida entrou numa era completamente nova, porém apenas em países onde a maioria da população (ou pelo menos aquelas com quaisquer das seis categorias identitárias mencionadas antes, que os EUA desejam alvejar) utilizam mídias sociais, o que não é o caso em boa parte da África, que estão gradualmente tornando-se campos de batalha de Guerras Híbridas contra os projetos de Rota da Seda da China.

 

12. Como devemos reagir a Guerras Híbridas?

Depende no caso de atores do Estado ou não Estado, e se no segundo caso, pró ou contra o Estado. O Estado pode restringir ou monitorar mídias sociais, embora a a primeira ação mencionada possa inadvertentemente despertar a fúria da população, e sem querer confirmar as suspeitas do povo de que o governo está suprimindo seu “direito de livre expressão” porque está com “medo” deles, o que pode ser verdade ou não. Atores que não sejam do Estado, como o cidadão comum, precisam aprender pensamento crítico para diferenciar entre notícias reais, fake news, e notícias manipuladas, bem como a diferença entre colunas não editoriais, análises, e simples reportagem jornalística. Quanto aos partidos de oposição, tanto sistêmicos quanto não sistêmicos, estes precisam engajar-se em suas próprias Guerras Híbridas, seja de modo ofensivo ou defensivo, embora sempre seja melhor que estejam do lado da verdade ao invés de valer-se de mentiras, porque a primeira é bem mais efetiva que a segunda, e ser pego mentindo pode diminuir a confiança da audiência nesses grupos. Da mesma forma, todos os lados da eterna Guerra Híbrida (que está se tornando parte da vida cotidiana) precisam expor as mentiras dos outros.

13. Você escreveu sobre ações dos EUA mas não cita movimentos similares da parte da Rússia. Porém, eles não existem? As acusações contra a Rússia nesta área (em especial quanto às eleições americanas) não são verdadeiras?

Meu livro trata primordialmente sobre o uso de um modelo específico que transicionada do encorajamento de externamente atividade antiestatal não-cinética para atividades cinéticas (Revoluções Coloridas não-violentas transformando-se em Guerras Não Convencionais violentas) e almeja provar a existência de um método nunca antes descoberto de desestabilização estatal, posto em prática pelos EUA por propósitos geopolíticos. É importante lembrar que o livro trata de Revoluções Coloridas transformando-se em Guerras Não Convencionais, a origem destas duas, a fase de transição, e o resultado destes ciclos autossustentáveis de inquietude apoiada por partes estrangeiras. As Guerras Híbridas não são apenas operações de gerenciamento de percepção ou infowars, coisa que todo país do mundo faz e até mesmo muitos atores corporativos (embora os últimos não o façam por razões políticas, mas simplesmente para mercadejar seus serviços ou produtos, às vezes às custas dos competidores). As Guerras Híbridas também nem sempre são mantidas por atores estatais, ou mesmo por atores não estatais conduzindo uma certa atividade em prol do Estado.

É minha visão pessoal que as acusações contra a Rússia não são relevantes para o modelo de Guerra Híbrida elaborada em meu livro, porque nunca houve nenhuma intenção séria de organizar uma Revolução Colorida ou Guerra Não Convencional. Mais ainda, todas as acusações apontam para atividades bem conhecidas sendo conduzidas por um ator não estatal, que pode ou não ter agido em prol do Estado, porém jamais se confirmou uma conexão clara com o Kremlim. Outro ponto importante a se ter em mente é que mesmo se a cor geral dessas acusações seja verdade, o que eu duvido, representaria apenas uma forma bem básica de guerra de informações, coisa que é comparativamente mais crua e de escopo bem menor do que a União Soviética conduziu durante a Guerra Fria, o que mais uma vez sugere que deve ter havido engajamento de um ator não estatal de fato independente do governo russo e suas agências de inteligência.

Em todo caso, a questão foi artificialmente politizada, porque já foi provado que não houve impacto no resultado das eleições, mas foi algo transformado em arma pelos oponentes de Trump no “Estado Profundo” (burocracias diplomáticas, inteligência, e exército permanente), e seus cúmplices públicos (sejam “idiotas úteis” ou colaboradores voluntários) acadêmicos, midiáticos e em outras comunidades (incluindo-se aí cidadãos comuns) para “deslegitimar” sua vitória e pressioná-lo a fazer Alteração de Regime (concessões políticas), Mudança de Regime (renúncia ou impeachment), ou Reinicialização de Regime (a reforma do sistema de colégio eleitoral e outras medidas do gênero). Pode-se dizer que as acusações exageradas de “interferência russa” estão sendo usadas como importante armamento de Guerra Híbrida contra Trump, como parte das guerras de “Estado Profundo” nos EUA, o que pode ser um futuro estudo de caso interessante no contexto de meu modelo.

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