Globo desinforma sobre pirataria

fev 21, 2021 | Notícias | 1 Comentário

Jornal O Globo desinforma sobre pirataria e estimula vítimas a aceitar acordos duvidosos

por Wesley Safo

Primeiramente, aos interessados nos desdobramentos do caso dos copyright trolls, sinto informar que, mesmo após a nota conjunta assinada pelo Partido Pirata, com organizações de defesa da liberdade na internet, defesa do consumidor e entidades da área de direitos autorais, divulgada no dia 4 de janeiro, a perseguição massiva de usuários de torrents não apenas continua, mas se intensificou com a participação de mais um  escritório de advocacia enviando cartas.

Isso parece indicar duas coisas: primeiro, que apesar do pouco tempo de operação, a estratégia de envio de notificações insinuando uma multa já se mostrou lucrativa para incentivar a participação de novos escritórios, segundo, que essa é uma prática que pretende ser praticada no longo prazo, de modo a criar precedentes que sirvam a uma mudança de jurisprudência e/ou legislação em favor de criminalizar, ao menos parcialmente, o compartilhamento de arquivos torrent na internet no Brasil, assim como já ocorreu em outros países.

Somado a isso, no último dia 18 de janeiro saiu uma matéria no jornal O Globo sobre a atuação desses mesmos escritórios de advogados. Só que ao invés da matéria apresentar um tom crítico contra a prática de extorquir dinheiro das pessoas ao sugerir algum tipo de multa e a partir da invasão indevida de suas privacidades, a matéria abusa do estereótipo de pensamento colonizado para vender essa ação indevida como se fosse uma grande novidade, que já é amplamente praticada fora do país, além de sugerir incorretamente que baixar filmes por torrent seja algum tipo de crime. (Ver nota no final do artigo)

Para percebermos os vários problemas, é melhor comentarmos a matéria trecho a trecho:

Baixou um filme pirata na internet? Fique de olho na caixa de correio, você pode ser o próximo a receber uma carta do escritório de advocacia que representa o estúdio ou a empresa distribuidora do filme advertindo sobre o crime contra direito autoral e pedindo indenização.

Veja como o parágrafo acima busca vender a ideia de que ludibriar as pessoas seja algum tipo de novidade incrível que está chegando de fora. Além disso, ele afirma que a empresa estaria advertindo as pessoas “sobre o crime contra o direito autoral”, quando, pelo nosso código penal, não há crime nenhum.

Em seguida mostra um breve relato de alguém que recebeu uma dessas cartas:

Tinha baixado há meses um filme que não consegui assistir no cinema, nem me lembrava mais. Foi uma surpresa a carta. Liguei para o escritório de advocacia e fizemos um acordo. Mas foi importante para me conscientizar, nunca tinha pensado nisso como crime

Veja que a matéria não afirma que a pessoa cometeu um crime, mas apela para o moralismo ao encarar um processo em que uma pessoa foi ludibriada a pagar sem precisar como uma “conscientização”. Continua:

O advogado Rafael Lacaz, sócio sênior do escritório Kasznar Leonardos Propriedade Intelectual, que representa estúdios e distribuidoras de filmes, diz ter enviado mais de mil cartas a brasileiros que baixaram filmes piratas. E esse número vai crescer, avisa:

— Hoje a tecnologia permite o rastreamento da máquina onde foi feito o download, determina hora, dia, mês e ano. A partir dessas informações, acionamos a operadora para identificar o usuário da máquina e enviar a notificação.

Ou seja, o próprio advogado está admitindo que usou algum tipo de tecnologia privada para descobrir o histórico de comportamento das pessoas na internet, interferindo com a privacidade dos usuários.

Em seguida, um advogado, que mora no exterior, afirma que não é possível alegar desconhecer a lei

Eduardo Magrani, advogado especialista em direito digital, diz que na Europa, onde mora atualmente, pedidos de indenização acontecem há anos:

— No Brasil, apesar da lei não ser recente, o cumprimento pelo lado do consumidor não era exigido. Ninguém pode se eximir de cumprir a lei, alegar desconhecimento.

Aparentemente, quem desconhece a lei é ele mesmo.

O único trecho que apresenta algum conteúdo minimamente correto é o seguinte:

Especialista em segurança digital, Emilio Simoni, diretor do dfndr lab, diz, que além do risco legal, baixar filmes, músicas e outros conteúdos piratas pode trazer problemas:

— Sem perceber, a pessoa executa programas que permitem acesso a credenciais bancárias, redes sociais, e-mail. O antivírus até bloqueia, mas muitas vezes o usuário desativa, não entendendo se tratar de questão de segurança.

Simoni diz ainda que há casos em que os criminosos transformam os computadores em “máquinas zumbis”, que usam para operações como ataques hackers e mineração de criptomoedas.

A possibilidade de infectar a maquina ao executar arquivos baixados na máquina por meio de arquivos torrent realmente existe e esse em geral é considerado o fator negativo que todo o usuário precisa levar em consideração e tomar cuidado ao baixar determinados tipos de arquivo em formato torrent, em especial arquivos executáveis (“.exe” no Windows).

Por fim, a matéria tenta usar um estigma através da velha associação entre pirataria e crime organizado:

— O Brasil é o terceiro país do mundo em acesso a sites piratas. Em 2019, foram 7,2 bilhões de acessos. O risco de contaminar o computador com um vírus é 28 vezes maior em um site de pirataria. Além disso, as organizações por trás desses sites financiam outros crimes — diz.

E conclui afirmando erroneamente que todas as importações de TV box, também conhecidas como IPTV, tem alguma ligação com o contrabando e o crime organizado

— Além dos crimes relacionados à propriedade imaterial, os responsáveis pelas importações de TV box têm ligação com contrabando e lavagem de dinheiro. Quando o cidadão adquire esse tipo de aparelho, com programas piratas, acaba financiando o crime organizado — explica o delegado Fabricio Oliveira, titular da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) da Polícia Civil do Rio.

Essa associação entre crime organizado e pirataria é tão antiga, mas ao mesmo tempo tão ridícula que só nos resta rir de todo o “esforço” da propaganda anti-pirataria em achar esse tipo de vínculo.

Isso porque todo mundo sabe que quem vende dvd’s e outros produtos piratas são pessoas de baixa renda que gravam filmes em dvd virgem. Quero dizer, não é necessário você pedir autorização do traficante pra baixar o nero no seu computador.

O próprio preconceito e estigma da pirataria como algo associado ás classes de baixa renda fica evidente na imagem da matéria jornalística, que mostra um suposto pirata, com as mãos pra trás, como se estivesse sendo algemado e com a cara escorada contra a televisão.

Apesar do STF já ter se manifestado mais de uma vez que o uso de algemas só deve ser utilizado se estritamente necessário, na prática esse tratamento mais abusivo na hora da prisão geralmente ocorre em crimes contra o patrimônio, mostrando uma tentativa de equiparação da pirataria com o roubo.

Mas como já cansamos de repetir por aqui, copiar não é roubar.

 

 

Globo, a gente se liga em você

Se a postura intolerante com o mundo digital por parte da matéria do jornal O Globo fosse algo exclusivo dessa matéria, não teria problema nenhum. Poderíamos com isso, simplesmente assumir que essa matéria foi encomendada pelos escritórios de advocacia a algum jornalista amigo que trabalha por lá.

No entanto, não é possível afirmar isso, já que o próprio jornal já deixou claro que, dentro do debate sobre a importância da liberdade de expressão, se ela tiver que escolher entre a difusão de novas ideias e a censura, ela prefere o modelo de remoção imediata do conteúdo reportado (notice and take down), que considera mais benéfico por ser capaz de “preservar a democracia”.

E embora não seja nenhuma surpresa que o conteúdo do jornal O Globo busque refletir e até mesmo preservar aquela velha postura lacerdista liberal-conservadora do público de classe média carioca, essa mesma postura também parece ser compartilhada pelo restante do grupo globo como vimos no recente caso em que a Globo derrubou a transmissão oficial do canal da NBA no youtube.

Entre as consequências para a Globo em continuar com essa mesma postura fechada e agressiva em relação aos direitos autorais não estão o ostracismo ou a irrelevância, pois a importância de programas populares como Big Brother e outros ainda vão continuar por muito tempo, mas no que tange ao controle da vanguarda artística, que esteve sempre presente ao lado de Roberto Marinho, essa tende a se perder, pois a televisão vem perdendo cada vez mais importância e espaço para a Internet.

Esse tipo de postura ainda seria compreensível se ações desempenhadas pelos escritórios de advocacia tivessem algum algum potencial efetivo de acabar com a pirataria. Mas não tem. Mesmo se baixar filmes piratas passasse a ser considerado crime, isso apenas levaria a adoção em massa de práticas que buscassem burlar os mecanismos de detecção de IP’s, como instalar uma VPN. E para os que não conhecem do que se trata, não é nada nem difícil, nem caro de instalar, com a maioria dos serviços custando cerca de 20 reais por mês.

Esse tipo de prática buscando burlar barreiras, no entanto, não seria praticada por todos de maneira igual, pelas limitações técnicas de muita gente que não sabe sequer resetar o PC, mas ainda assim haveria uma adoção maior desses mecanismos entre as pessoas com maior nível educacional, produzindo o efeito perverso de que as pessoas que passariam a usar torrents estariam limitadas a pessoas de alta renda, enquanto que o restante da população, sem tanto conhecimento técnico, seria mais criminalizada. Um traço bastante comum da desigualdade social em nosso país.

Verdade seja dita, muitas vezes não é do interesse desses escritórios de advocacia buscar resolver problemas relacionados a direitos autorais de maneira definitiva. Isso porque da mesma maneira que uma farmacêutica lucra muito mais produzindo remédios para sintomas graves do que vacinas, interessa a esses escritórios prolongar a ocorrência desse tipo de litígio para que eles ganhem um espaço de atuação consolidado.

 

Sobre a pirataria na legislação brasileira

A lei brasileira não considera crime o download de músicas, filmes e séries. Até o momento, apenas fazer o consumo próprio, ou seja, assistir somente por diversão sem ter o objetivo de conseguir lucro, não se enquadra na descrição de crime no Direito Penal Brasileiro.

Conforme o artigo 184, do Código Penal, o direito do autor é manchado só quando o infrator, com o intuito de obter lucro de maneira direta ou indireta, faz a distribuição, venda, aluguel, esconde, armazena, copia ou a versão original de um conteúdo intelectual ou fonográfico reproduzido com violação do direito do autor, do direito de artista interprete.

E o inciso quarto deste mesmo artigo, coloca exceção à regra quando se refere à cópia da obra, com um único exemplar, para a utilização privada do copista, sem o fim lucrativo.

Então, para o Direito Penal do Brasil, o crime de violação de direitos autorais só ocorre quando a cópia ou a reprodução acontece com a ideia de obter um lucro. Por exemplo: o comerciante que vende o DVD dos Vingadores ou um CD novo de Luan Santana está infringindo a lei, já que ele tem o intuito de lucrar sem realizar o repasse dos royalties aos respectivos autores.

Já qualquer pessoa que faz o download de um filme ou de uma série somente com a ideia de assistir no sossego de sua casa, não está cometendo nenhum crime, pois não há nenhuma intenção de fazer dinheiro com esse conteúdo.

1 Comentário

  1. Andrade

    Claro que a Globo fez isso, ela é uma das maiores empresas do mundo em produção de conteúdo (claro que bem abaixo das empresas Americanas e até de outros países menos fortes, porém mesmo assim domina a maior parte do mercado nacional e exporta para centenas de países do mundo), então era de se esperar que ela se fosse montar uma reportagem sobre o fato, seria para aterrorizar os seus telespectadores a não fazerem uso de torrent, stream ou downloads de séries e outras produções deles e de terceiros.

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