Opinião: Derrotas que demandam sermos outras pessoas

out 10, 2018 | Notícias | 0 Comentários

Cumpriu-se a profecia da ex-presidente Dilma Rousseff: “Não acho que quem ganhar ou quem perder […] vai ganhar ou perder. Vai todo mundo perder”.

artigo originalmente postado aqui

Enquanto B. foi à Record discursar livremente (inclusive para desmentir as declarações catastróficas de seu vice) e exibir sua aliança com uma das maiores instituições do país (a IURD de Edir Macedo), as redes foram preenchidas de acusações de “covardia” por ele ter “fugido” do “debate de ideias”, esse estranho parâmetro de racionalidade humana que pouquíssimo importou para sua ascensão e ainda assim tem sido considerado de suma importância para sua… queda.

Enquanto a campanha de B. usou os serviços da AM4 (empresa de “inteligência digital” sediada na Lapa/RJ) para alimentar mais de 1000 grupos (como “ponto de partida”!) de WhatsApp com conteúdo, pouquíssimo trabalho de infiltração e sabotagem foi realizado, nenhuma contra-inteligência digital foi elaborada, deixando a campanha fluir livremente e parcialmente “escondida”.

Enquanto a campanha de B. criou um mecanismo de autodefesa praticamente incontornável para os defensores do candidato, de modo que toda acusação poderia ser rebatida como descontextualização e injustiça promovida pela mídia corporativa, impulsionava-se essa mesma mídia em sua checagem de fatos (a nova face da indústria da mentira) e as acusações/denúncias continuavam como se tivessem alguma relevância por elas mesmas, como se “dizer os fatos” tivesse algum valor por si só.

Enquanto a campanha de B. espalhava robôs aos montes pelas redes sociais, discutia-se com esses mesmos robôs sobre todos os aspectos terríveis de B. como se fosse possível vencer uma máquina (e impedi-la de trabalhar, aproveitando que desligar e tirar da tomada são coisas que ainda funcionam) com argumentos e tiradas “inteligentes”, como se a máquina realmente fosse nossa inimiga e não pudesse ser também reprogramada/modificada.

Enquanto a campanha de B. e o MBL importavam para o Brasil a percepção de que a esquerda é elitista e arrogante, especialmente a partir de ataques às coisas que a esquerda pensa serem compreendidas apenas por ela mesma (arte, história etc.), chamava-se as pessoas de “burras”, “imbecis”, “analfabetas” etc. por… supostamente não compreenderem essas coisas.

Enquanto B. se coloca (falsamente) como a antítese do sistema político, daquilo que há de velho e podre e falido em nossa sociedade, defende-se tudo aquilo que há de velho e podre e falido em nossa sociedade, gerando a percepção de que quem se coloca contra B. só pode estar carregando todo tipo de má intenção.

Enquanto B. vendia a ideia de que uma mudança de postura era mais fundamental que qualquer projeto de governo específico, mantinha-se firmemente a postura de denunciar e rir da ausência de projeto de governo específico.

Enquanto a campanha de B. investia em estratégias capazes de levar seu candidato além dos tradicionais candidatos e partidos de direita, sua oposição se mantinha firmemente apegada ao que sempre fez, não mudando estrategicamente em nada (parte dela chegando ao cúmulo de lutar contra esse tipo de mudança como se a derrota fosse um paraíso).

Enquanto a campanha de B. criou e sustentou até o momento um mito, sua oposição tentou destruí-lo com o logos (como se isso tivesse funcionado alguma vez para tornar qualquer mito inimaginável) em vez de construir mitos ainda mais poderosos e saudáveis, como os que sustentam os povos originários que ela geralmente só respeita sob a condição de poder julgá-los como um aglomerado de seres irracionais.

Enquanto a campanha de B. criou dispositivos para redirecionar vontades (nem sempre “coerentes”) para a produção de uma única realidade (um brasil sem PT/comunismo/etc.), alimentando uma forma perversa de magia, nenhum tipo de modificação significativa dos modos de pensar foi realizada em conformidade com as vontades de vencer (derrotar B.) expressas pela oposição, que, em geral, buscou apenas enraizar ainda mais seus modos de pensar (demonstrando toda sua ineficiência mágica).

Enquanto a campanha de B. tentou mostrar a incompatibilidade do cristianismo (especialmente o evangélico) com o espectro do comunismo… a mesma coisa foi feita (em geral) por todos os lados (enquanto comunistas permanecem tentando exorcizar a religiosidade da política e manter os falidos campos autônomos da ideologia iluminista em pé e bem fechados).

Enquanto B. consolidou uma variação mutante de cristianismo altamente bem-sucedida e compatível com armamentismo e apologia à ditadura, gritava-se aos quatro ventos que havia uma incompatibilidade entre armamentismo/apologia à ditadura e um cristianismo que já havia sido deixado para trás (não sendo mais relevante).

Enquanto os principais afetos mobilizados, estimulados e multiplicados pela campanha de B. são os que movimentam as pessoas com intensidade, a impotência, o desespero, a tristeza e a melancolia crescem e se multiplicam do outro lado como nunca, nesse terreno altamente fértil que é a imaginação política pós-desertificação.

Enquanto pessoas são ameaçadas e agredidas por eleitores de B. e candidatos do PSL nas ruas, as redes se enchem de textos, relatos de medo e intenções de voto como resposta.

Enquanto este mundo agoniza e vomita tudo aquilo que tem de pior (e que não veio de lugar algum senão dele mesmo), luta-se pela manutenção dele como se já não fosse uma máquina de morte, como se não houvesse mundos em nosso planeta nos quais o fascismo é simplesmente inimaginável.

São derrotas em todos os âmbitos possíveis. Não são derrotas eleitorais — B. pode perder no segundo turno, pode ganhar, pode desaparecer misteriosamente, pode levar uma facada mortal — nada disso nos dá qualquer vitória (especialmente quando seus aliados estarão em todo lugar, alguns deles não sendo mais que candidatos pouco expressivos até outro dia). São derrotas em muitos âmbitos. Tudo isso que a campanha de B. construiu pode ter usos não-eleitorais (e esses usos têm sido feitos). Toda essa engenharia perversa pode ganhar ainda novos usos após uma vitória de B. (ou mesmo após uma derrota). Não há cenário ou turno em que essa engenharia multidimensional não nos derrote.

“Mas isso tudo é muito triste/desesperador”. Apenas se quisermos continuar as mesmas pessoas. Apenas se não quisermos ser versões melhores e mais saudáveis do que somos agora. Apenas se não tivermos interesse em construir um futuro ou um mundo.

“Mas de que adianta isso agora?”, alguém pode perguntar. E de que adiantou antes? O que tem funcionado então? Desde muito tempo que essas coisas são ditas, por muitas pessoas em tudo quanto é canto disso que chamamos “Ocidente”. Sempre os sacerdotes da oportunidade nos dizem: “não é hora para isso”. Sempre os sacerdotes realistas nos dizem: “isso não funcionaria”. Sempre os sacerdotes da modernidade (em aliança com a alt-right) nos dizem “isso é pós-moderno!”. Mas está cada vez mais difícil sufocar alternativas.

“Mas pra que este texto então?”. Um texto deve poder mostrar o fracasso do texto. Especialmente do texto verdadeiro, o texto que descreve verdadeiramente os fatos como eles realmente ocorreram (de que importam as verdades que não libertam?). De nada adianta uma resposta-efeito que se dá em um jogo de linguagem diferente da resposta-causa. Ou ainda: de nada adianta colocar um espelho de frente para a parede e esperar que esse reflexo signifique algo para alguém.

Então, o que nós vamos construir?

Imagem em destaque: Fábio Tremonte. Em exposição no MAR (“Quem não Luta tá Morto — arte democracia utopia”).

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