Machismo na rede: ameaça de um gamergate brasileiro

jul 15, 2015 | Notícias | 4 Comentários

Na última semana, foi divulgado um novo documentário, produzido por estudantes da USP, que questiona machismo e preconceito no universo gamer brasileiro. O filme consiste em entrevistas e análises da percepção de gamers sobre o tema. Não deu outra: explosão de chorumelas, ataques pessoais e ameaças. Até mesmo o site Geração Gamer, que divulgou o vídeo, sofreu ameaça de usuários que prometeram agir para derrubar o site, e o vídeo foi retirado do ar para proteger seus autores.

Usuários anônimos se uniram para deflagrar uma versão brasileira de uma ação de ataque que ficou conhecida nos EUA como Gamergate .

O caso Gamergate

No começo de 2013, Zoe Quinn, desenvolvedora independente, lançou um jogo interativo chamado Depression Quest (sem tradução oficial em português). Na linha recent de art games, como o aclamado Journey e Limbo, o jogo recebeu críticas bastante positivas e gerou um burburinho incomum fora dos blockbusters.

Seria um retorno positivo em várias frentes: uma jovem desenvolvedora num meio de estereótipos masculinos, obtém sucesso com projeto independente numa indústria de grandes corporações. Porém, muitos usuários acharam que o jogo e Quinn estavam recebendo atenção demais. Ela foi acusada de trocar sexo por uma resenha positiva do jogo para alavancar sua carreira. Houve divulgação de dados pessoais, assédio e ameaças a ela e sua família. Os ataques comumente acompanhavam a hashtag Gamergate – uma referência ao escândalo Watergate, que derrubou o presidente americano Richard Nixon.

Outras jovens desenvolvedoras foram atacadas na sequência, com disseminação massiva de mensagens de ódio e ameaças claramente direcionadas a mulheres. Brianna Wu, que desenvolveu jogos de aventura e ficção científica com totalidade de personagens femininos, sofreu ameaças a ponto de precisar se mudar às pressas, com proteção policial.

O que leva alguém a criar especificamente um perfil de “morte a …”?

O caso acabou ganhando dimensões globais quando a crítica de cultura Anita Sarkeesian, também feminista e geek, expôs este e outros casos em agosto de 2014, fazendo uma análise crítica sobre o machismo impregnado na cultura geek, no universo dos games e em fóruns pela internet. Ela publicou uma série de documentários sobre o tema, pelo qual chegou a receber alguns prêmios, atraindo atenção da imprensa sobre esses assuntos. Virou rapidamente o novo alvo principal da hashtag Gamergate – recebeu as mais diversas provocações e ameaças, e chegou a ter de cancelar uma palestra porque a Universidade que receberia o evento recebeu ameaças de um ataque em massa. Só então o caso ganhou contornos midiáticos.

A estratégia adotada, conhecida como shaming (algo como “envergonhamento” em inglês) é velha conhecida de casos típicos de crimes de gênero, em particular, exposição de imagens e outros detalhes íntimos de mulheres com o objetivo de atingir sua reputação, o que ajudou a expor o profundo sexismo nesse submundo dos games, e uma estratégia ativa de exclusão das mulheres que ousam adentrar esse meio.

Machismo nerd: você já viu esse filme

Em um minuto, quantos jogos e filmes dá para listar em que as garotas são todas peitudas, usam decotes generosos, fendas, saias curtas ou trajes que parecem biquínis…mesmo quando isso não encaixa de maneira alguma na proposta do jogo, como armaduras medievais e cenários de luta?

“Qual o problema? É uma forma de apreciar o corpo feminino – e além disso, elas sempre estiveram lá. Por que criar caso agora?”

Se não faz sentido uma armadura-biquíni toda colada ao corpo pelo gameplay, pelo roleplay , pelo bom senso do próprio objetivo de se usar uma armadura  e não seria uma construção social válida – uma vez que mulheres já são hostilizadas ao usar roupas consideradas “vulgares” -, a explicação é uma: o traje está lá para expor e sexualizar o corpo dos personagens femininos. E sim: isso é machismo.

Isso não é uma armadura

  (retirado deste post  sobre armaduras totalmente não-práticas)

 

Para  ajudar a entender o quão ridículo isso deveria parecer, alguns blogs publicaram imagens de como seriam armaduras e trajes masculinos se tivessem o mesmo tratamento. Aqui e aqui .

Vídeo do College Humor sobre a infame representação das armaduras femininas

Além das barreiras de representação feminina  e hipersexualização dos personagens, as garotas que adentram esses espaços enfrentam outro aspecto bastante comum da sociedade: precisam se “provar dignas” de estar nesses espaços, sendo cobradas e questionadas de forma desproporcional quanto às suas capacidades como espectadoras, conhecedoras de cultura, gamers ou profissionais.

Não passamos da metade do ano e já tivemos alguns casos relevantes no Brasil.

Em um podcast nerd de grande alcance, foi discutida a “impossibilidade” de observar os seios de uma mulher que esteja amamentando. Uma blogueira nerd escreveu sua crítica a respeito – e recebeu de volta ataques em suas páginas.

O anúncio das características da próxima edição da popular série de jogos de esportes FIFA – na qual será possível montar times femininos – gerou indignação e revolta por parte do público, que alega que o FIFA sempre foi, e deveria continuar sendo, um jogo para meninos.

Sem dúvida, é um passo importante na representação feminina, e ao que tudo indica, daqui não deve recuar, o que deve deixar muitos orgulhosos participantes do clube do Bolinha de cabelo em pé por algum tempo.

Raízes de mundos imaginários, consequências reais

Nos últimos dez anos, houve uma verdadeira explosão da cultura geek, alavancando-a um lucrativo mercado e consolidando definitivamente o estereótipo do que antes era considerado a imagem do perdedor a uma figura descolada e culta. Quando as indústrias baseadas em copyright – cinema e música, em particular – entraram em crise com as novas modalidades de consumo, a indústria de games, por outro lado, estava em clara e vertiginosa ascensão. A identificação com novas franquias, reavivando o mercado de quadrinhos e itens correlatos, teve uma assimilação rápida pelo perfil das pessoas que se identificaram com esse meio. Até então, não havia traço de glamour em conhecer piadinhas com termos físicos ou conhecer a fundo as diferenças entre Marvel e DC. O arquétipo nerd – do garoto franzino, interessado em ciência, sem sorte com as mulheres, de gosto duvidoso para moda e cheio de referências a jogos, HQs e sci-fi – apareceu e atraiu um público antes excluído, agora se vendo plenamente representado – e melhor que isso, cultuado, desejável, envolto numa aura de uma espécie de glamour no clubinho cult. Voilà.

Não é novidade a forma como essas indústrias comercializam os papeis femininos. Leia-se: preferencialmente secundários, reducionistas e com forte apelo sexual, comumente com forte apelo estético e sexualização do personagem, como ferramenta para atrair o público masculino. A construção dos personagens via de regra teve o cuidado de impedir qualquer tentativa de verdadeira representação feminina, ao mesmo tempo excluindo as garotas como público e reforçando velhos estereótipos e sistemas culturais de opressão (o mesmo ocorre com outros grupos e minorias, com invisibilidade e estereotipação de personagens negros, LGBT, por exemplo).

Essa barra forçada para desqualificar a mulher como protagonista no meio nerd/gamer persiste mesmo após pesquisa divulgada nos Estados Unidos, em setembro do ano passado, revelar que aproximadamente 52% dos jogadores são mulheres.  

Então, começaram a despontar garotas com maior visibilidade – jogadoras, críticas, desenvolvedoras, youtubers, entre muitas outras posições. Quando houve a expansão dos produtos voltados para o público geek, as meninas foram sumariamente preteridas e colocadas lá, também, como subprodutos e coadjuvantes: estava formado um status quo confortável para os garotos, protegidos nesse “clube do bolinha” onde tudo era permitido e voltado para eles, e desconstruir os preconceitos e estereótipos confortavelmente estabelecidos não estava nos planos. De alguma maneira, a ascensão de espaços protagonizados por elas parece ter ameaçado esse mundinho dos sonhos da nossa sociedade tradicionalmente machista, e a reação vem à altura.

Se por um lado a exposição desse lado obscuro da cultura pop possibilite jogar luz ao tema, com a problematização e abertura para o debate, o apego a essas “tradições” fóbicas e as “táticas” utilizadas para manter o status possuem efeitos bastante perversos, particularmente sobre as meninas, que são desestimuladas e desencorajadas a participar desse meio.

As garotas que criaram o mundo digital

Diferente do imaginário comum, nem sempre computação foi uma coisa “de meninos”.

As primeiras programadoras da história  eram mulheres. Os primeiros algoritmos para processamento em uma “máquina analítica” foram escritos por Ada Lovelace, entre 1842 e 1843, conferindo a ela o título de primeira programadora da história. Posteriormente, mulheres trabalharam fazendo cálculos balísticos para o programa Eniac, no Deep Space Network da NASA, criando o conceito de  programação em si com algoritmos, criando a linguagem usada até hoje em  sistemas comerciais e financeiros.

Até meados de 1984, mulheres ocupavam boa parcela das posições de desenvolvimento de sistemas. Computadores e games não tinham, até então, um caráter associado a gêneros. O percentual feminino atuando em carreiras digitais, que vinha em acentuado aclive e superava a taxa de crescimento masculino na área, passou a decair drasticamente a partir de 1984. O que teria acontecido?

Nessa época, computadores pessoais estavam se popularizando e as carreiras correlatas passaram a ter maior visibilidade. De fato, foram lançadas as primeiras campanhas publicitárias de computadores pessoais que continham jogos simples. Essas campanhas eram voltadas para homens.

Apesar do papel fundamental no crescimento das indústrias de tecnologia, mulheres passaram a ser continuamente preteridas nos postos de trabalho, sob as mais esdrúxulas desculpas, como “mulheres não podem fazer trabalhos pesados” (quem disse isso provavelmente nunca cuidou de crianças), seguido de “mulheres não parecem programadoras”. A importância crescente conferida às áreas de tecnologia no mundo moderno, somada ao reforço sistemático da imagem do desenvolvedor como homem, e portanto preferível como imagem expoente e público consumidor, negaram pela identificação às garotas e mulheres este universo em ascensão.

Primeiro comercial do Macintosh da Apple. Curiosamente, neste vídeo, quem “salva” o público da ignorância é uma garota

Estas  são apenas algumas das mulheres que mudaram o mundo e significam muito  para culminarmos na ideia. E foram silenciadas por uma história  masculina e patriarcal.

Para pesquisarem:

  • Augusta Ada Lovelace
  • Dana Urely
  • Grace Murray Hoper
  • Henrietta Lacks
  • Jocelyn Bell Burnell
  • Hipátia de Alexandria
  • Valentina Tereshkova
  • Rosalind Franklin
  • Cecilia Payne-Gaposchkin
  • Emmy Noether
  • Margaret Hamilton

Precisamos mudar esse jogo antes do game over

Muitas das pessoas que se engajam em ataques como o Gamergate acreditam não passar de uma brincadeira ou mesmo que estão com razão, apenas defendendo o seu  direito de manter intocado um nicho ou sub-cultura que eles adoram, quando na verdade estão apenas estendendo o abuso a segregação que já existe contra os mulheres no mundo dos videogames para a vida real.

Muito antes do #gamergate vimos a comunidade gamer ignorar, minimizar e distorcer acontecimentos de denúncias femininas de assédio e abuso. Mulheres são julgadas como “invasoras” do video game, “incapazes”, “posers” e “attwhores”. Quando participam de campeonatos, fazem cosplay, ou mesmo entram em competitivos on-line, o assédio, os abusos e a violência fazem com que várias desistam dos games, de campeonatos, de eventos e até mesmo do desenvolvimento de jogos. Quando se “atrevem” a usar a usar a própria voz, são silenciadas por enxurradas de ódio, ameaças e julgamentos, na maioria das vezes – novidade nenhuma aqui- atrelados à sua sexualidade.

As ameaças sofridas por mulheres não chocam: a ameaça à mulher é trivial, parte insignificante do cotidiano.

São banalizadas, diminuídas, relativizadas, e até entendidas como algo natural, dada a “invasão” da mulher a um espaço que não é entendido como “dela”. As ameaças e ataques pessoais são tão comuns que não geram comoção, e quando se concretizam, são meramente estatística. As ameaças à segurança e à dignidade da mulher não são levadas a sério.

A sistematização da exclusão das mulheres desses espaços, e a forte reação gerada pela crescente visibilidade e questionamento desse status, são tão somente outra forma de replicar na cultura nerd os mesmos sistemas de opressão que sempre estiveram presentes na sociedade, destinando aos garotos os espaços de maior destaque e tentando protegê-los a todo custo, tentando resguardar um dos últimos “refúgios” sociais encarados como espaço “de meninos”. A cegueira da publicidade e produtos voltados a esse mercado em relação à presença feminina entre o público não deve ser encarada como “acidental”: ela esteve presente por muitos anos demarcando território, e mais ainda conforme foi se tornando palpável a importância dessa subcultura.

O mundo digital reflete o desequilíbrio das relações de poder presente em segmentos da sociedade, em que mulheres são mais cobradas e menos remuneradas que colegas masculinos, tem seus feitos negligenciados, deslegitimados ou apropriados por outros. A rejeição à participação feminina nesses âmbito tem efeito político – combatê-la é um ato político e um dever.

Falta  politização e conscientização.  Falta empatia. Falta humildade, falta  diálogo. Os homens que se sentem  privilegiados pelo patriarcado e não  querem abrir mão de seu privilégio  têm que ser confrontados, o silêncio  conivente precisa acabar. O mundo  não é deles para que todos os outros  se sirvam, e gostem dessa  realidade ou não, é ela que está presente. Porém, vários espaços surgiram nos últimos anos para acolher as garotas, que adquirem cada vez mais visibilidade, e estes ficarão cada vez mais fortes.

Piratas lutam pelo empoderamento, pelo questionamento de todo sistema pré-estabelecido, pelo exercício pleno do direito ao ativismo, pela igualdade e combate a toda forma forma de opressão.

O lugar das geeks é onde elas quiserem!

4 Comentários

  1. Nano Lima

    Excelente matéria! Sou Geek, Gamer e entusiasta de segurança da informação. Nunca imaginei que havia esse machismo no universo Geek. Essa coisa de ataque as meninas é abominável! Por mim quanto mais garotas no meio Gamer melhor, elas tem o direito de se divertir como quiser e onde quiser. Essa coisa de clube do bolinha não é legal, sem contar que essas figuras depois reclamam que vivem na friendzone, olha o motivo aí! As mulheres devem ser tratadas com respeito, carinho e admiração, pois sem elas jamais existiriamos inclusive os palhaços machistas chauvinistas.
    Mulheres Geeks se UNAM e digam não ao machismo Geek, pois sem mulher não há beleza e sem beleza a vida é triste!

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  2. abelreit

    Gamergate não é sobre mulheres. É sobre dinheiro e p(f)oder.

    Os burocratas esquerdistas viram que a industria de games se tornou mainstream e cresceu em algo muito, muito rentável. Ainda mais se você levar em conta que, por causa do feminismo cada vez menos homens estão dispostos a desperdiçar tempo e dinheiro com mulher. Toda a grana que seria gasta em presentes, festas e casamento, vai para consumo pessoal.

    As egoistas viram uma comunidade em que elas não são o centro do mundo. Então essa comunidade precisa ser subjugada ou destruída.

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