Carta aberta do escritor ucraniano Yuri Andrujovich sobre o estado do país

jan 31, 2014 | Notícias, Tradução | 0 Comentários

Carta aberta do escritor e político ucraniano Yuri Andrujovich a todos europeus:

Queridos amigos e, em especial, queridos jornalistas e editores da imprensa no exterior!

Tenho recebido de vocês nesses dias muitas perguntas e pedidos para expor em traços gerais a situação atual em Kiev, na Ucrânia, e para, se possível, esboçar uma visão do futuro nem que seja apenas para o futuro próximo. Tendo em vista que eu simplesmente não tenho condições de escrever uma contribuição analítica detalhada para cada um de seus jornais, decidi me dirigir breve e conjuntamente a vocês, de modo que cada um de vocês possa utilizar as informações contidas aqui de acordo com sua própria necessidade. As informações mais importantes que tenho para partilhar aqui são as seguintes:

Em menos de quatro anos de mandato, o regime de Viktor Yanukovych levou o país e sua sociedade ao extremo da tensão. Pior ainda, encurralou-se em um beco sem saída, numa situação em que precisa se aferrar ao poder por todos os meios. Caso contrário, terá de enfrentar toda a severidade da justiça penal. As dimensões do que foi roubado e reprimido ultrapassam todos os limites da ganância humana.

Ao longo de mais de dois meses de protesto pacífico, a única resposta empregada pelo regime é a escalada da violência, que pode ser descrita como uma espécie de violência “combinada”: de um lado, unidades policiais realizam ataques contra a Maidan (Maidan Nezalezhnosti, Praça da Independência, foco dos protestos em Kiev), e de outro, ativistas da oposição e os meros participantes das ações de protesto são perseguidos individualmente (tocaias, espancamentos, carros e casas incendiados, residências arrombadas, prisões e um rolo compressor de processos judiciais). Intimidação se tornou a palavra-chave.

Vendo que a intimidação não produz efeito e um número cada vez maior de pessoas se soma aos protestos, o governo emprega represálias cada vez mais brutais. A base legal para as represálias foi criada no dia 16 de janeiro, quando os deputados, total e completamente dependentes do presidente, decidiram, em violação a todos os regulamentos, ordens do dia, procedimentos de votação e determinações constitucionais concebíveis e imagináveis, apenas com um erguer de mãos (!) em uma sessão que não durou mais que dois minutos (!), adotar uma série de reformas legislativas que, com toda a certeza, conduzirão o país rumo à ditadura e ao estado de exceção, por mais que o estado de exceção não tenha sido oficialmente declarado. Apenas para dar um exemplo, ao escrever e passar adiante estas linhas posso ser levado a juízo por vários crimes: por “difamação”, “incitação” etc. Em suma: se essas “leis” forem acatadas, qualquer um poderá afirmar que, na Ucrânia, tudo o que não for autorizado pelo governo está proibido. E o governo dá sua autorização a um ato apenas: a obediência incondicional ao próprio governo.

Não havia como a sociedade ucraniana aceitar essas “leis” e, por isso, os protestos em massa recomeçaram já no dia 19 de janeiro, nos quais está em jogo o futuro do país. Veem-se hoje nas imagens de Kiev que são veiculadas nos noticiários televisivos manifestantes usando os mais diferentes capacetes e máscaras de proteção, alguns levando bastões de madeira nas mãos. Vocês não devem achar que o que estão vendo são “extremistas”, “provocadores” ou “radicais de direita”. Não somente eu, mas também todos os meus amigos, vamos todos às passeatas equipados assim. Foram tão rápidos em nos caracterizar a todos – eu, minha mulher, minha filha, meus amigos – como extremistas. Não temos outra saída para defender nossa vida e nossa integridade física. Somos alvos ambulantes para os combatentes das forças policiais, nossos amigos são mortos por seus franco-atiradores.

O número de manifestantes mortos nos últimos dois dias, contando apenas a região central em torno dos edifícios do governo, chegou a 5 ou mesmo 7 vítimas fatais, de acordo com diferentes relatos. Já se contam em dúzias os desaparecidos em toda a cidade. Não podemos parar de protestar, pois isso significaria que teríamos de aceitar que nosso país se convertesse em uma prisão pelo resto da vida. Os jovens ucranianos, as gerações pós-soviéticas, não aceitam mais a ditadura. Se a ditadura vencer, a Europa precisa lidar com a perspectiva de ter em sua fronteira oriental um país como a Coreia do Norte. Além disso, isso acarretaria para a Europa uma onda de 5 a 10 milhões de refugiados.

Não quero que se assustem. Nossa revolução é a revolução da juventude. E essa guerra não declarada é travada pelo governo particularmente contra a juventude. Com a escuridão da noite, surgem nas ruas de Kiev grupos obscuros “à paisana”. Saem à caça principalmente de jovens que carreguem o mínimo indício de envolvimento ou simpatia com a Maidan ou com a Europa. Os jovens são capturados, levados à floresta, despidos e torturados sob o frio insuportável do inverno ucraniano. Parece ser por acaso que jovens artistas – atores de teatro, pintores, poetas – sejam as vítimas preferenciais desses ataques? Fica a impressão de que circulam pelo país algo como “esquadrões da morte”, que têm por objetivo eliminar os mais talentosos. E ainda um detalhe importante: nos hospitais de Kiev, são armadas armadilhas policiais para capturar manifestantes feridos. Os manifestantes (devo enfatizar isso uma vez mais: os manifetantes feridos!) são capturados nos hospitais e levados a locais secretos para serem interrogados. Mesmo para as vítimas atingidas aleatoriamente por uma granada policial, tornou-se perigoso procurar um médico. Os médicos dão de ombros e abandonam seus pacientes aos autointitulados “defensores dos direitos humanos”.

Em suma, gostaria de dizer: na Ucrânia, vêm sendo praticados crimes contra a humanidade em uma escala massiva e a responsabilidade por esses crimes recai sobre o atual governo. Quando aqui se fala de extremistas, é somente ao governo que isso se aplica. E agora, as duas questões geralmente mais complicadas: não sei o que vai acontecer, assim como não sei o que vocês poderiam fazer por nós neste momento. Vocês podem evidentemente passar adiante e divulgar esta carta. O que mais? Estejam juntos de nós em pensamento. Pensem em nós. Seja como for, nós venceremos, por mais cruéis que os de cima sejam. Hoje, os ucranianos estão defendendo, com seu próprio sangue, os valores europeus de uma sociedade livre e justa. E minha esperança é que vocês saibam ao menos reconhecer isso.
Tradução: Sebastião Nascimento

Fonte: http://ukraine.pirate-shop.com/

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