Zapatistas entregam dez toneladas de alimentos para docentes em luta no México

jul 9, 2016 | Ativismo, Manifestações, México | 0 Comentários

por galdino

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No dia 06 de julho de 2016, o blog da Comisión Sexta [1] do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) anunciou que deixaria de participar do festival CompArte por la humanidad, que será realizado entre 17 e 30 de julho deste ano [2]. O festival conta com inscrições de 1127 artistas nacionais e 318 de outros países, e ainda teria a participação de 1819 artistas zapatistas e 1566 pessoas das bases de apoio zapatistas que iriam como observadoras e ouvintes, tendo cada caracol [3] sua “delegação”. A impressionante e vasta lista das variadas expressões artísticas e dos locais de origem das pessoas inscritas pode ser conferida no comunicado assinado pelos Subcomandantes Insurgentes Moisés e Galeano.

O festival foi convocado a partir de um comunicado assinado pelo Subcomandante Marcos [4], onde todas as pessoas do mundo que praticam arte foram convidadas a contribuir com o evento, não havendo nenhum critério de determinação de quais práticas contariam como “artísticas” e quais pessoas contariam como “artistas”. De acordo com o comunicado, zapatistas consideram artista como toda e qualquer pessoa que declare sua prática como “artística” (“independentemente de cânones, profissionais de crítica de arte, museus, wikipedias e demais esquemas “especialistas” que classificam (ou seja: excluem) as atividades humanas”). O motivo para a suspensão da participação zapatista (que o comunicado deixa claro não significar também o cancelamento do festival – “Ninguém deve dar ordens às Artes”) foi a “solidariedade, respeito e admiração” pelo movimento docente que segue resistindo e lutando em território mexicano, onde a tensão só se faz aumentar com o tempo graças à repressão ao movimento e às posturas da Secretaria Nacional de Educação.

Assim, e de forma transparente, o comunicado lista todos os tipos de alimentos que serão entregues a “docentes que estão resistindo”, assim como suas respectivas quantidades e o caracol de origem. Esses recursos alimentares estavam sendo reunidos para sustentar artistas zapatistas que iriam ao festival CompArte, e somam 10 toneladas de comida com um valor aproximado de 290 mil pesos mexicanos. Os cinco caracóis estarão entregando suas partes em quatro cidades diferentes do estado de Chiapas, entre os dias 8 e 10: Comitán, Playas de Catazajá, San Cristobal de las Casas, e Tuxtla Gutiérrez. O comunicado deixa claro que os recursos não vieram de ONGs, programas governamentais de inclusão social, potências estrangeiras interessadas em desestabilizar a nação mexicana, e nem do crime “organizado ou desorganizado – ou seja, o mau governo”, mas sim do trabalho de coletivos produtores nos territórios zapatistas.

Já do outro lado dessa solidariedade, temos os movimentos docentes em guerra com o Estado mexicano. A Reforma Educacional no México foi apresentada pelo presidente Enrique Peña Nieto em 2012 e aprovada no mesmo ano na Câmara de Deputados e no Senado, sendo promulgada pelo Poder Executivo somente no ano seguinte. A proposta para tal reforma foi um dos desdobramentos do Pacto pelo México, um acordo firmado entre representantes de diferentes partidos eleitorais mexicanos, que buscava o fortalecimento do Estado assim como uma democratização da economia e da política institucional.  O acordo abrange questões como segurança, governabilidade, justiça, emprego, combate à corrupção, dentre outras. A aprovação da reforma se seguiu da promulgação de uma série de leis cuja recepção por parte da Coordenadoria Nacional de Trabalhadores da Educação (CNTE) envolveu crescentes protestos e marchas. O bloqueio de ruas, casas legislativas e até de um aeroporto demonstrou a força dessa organização docente.

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Todo o projeto de governabilidade das oligarquias mexicanas, todo o projeto de estabilidade política em torno de seus projetos e interesses, tudo isso passou a enfrentar um caos gerado pela reforma educacional. A proximidade entre parte do movimento docente e as construções de governos populares sem partidos ou estruturas antidemocráticas falidas tem sido um fator adicional importante para o aumento da tensão com o Estado Mexicano. A rede de inconformidade tem apenas crescido desde 2012, principalmente devido à repressão por parte das forças policiais e militares, à perseguição e prisão de docentes, às demissões e aos descontos salariais promovidos como retaliação pela luta docente. A violência estatal também teve mortes como consequência. No dia 19 de junho deste ano, por exemplo, em Nochixtlán (no estado de Oaxaca), um ataque de policiais estaduais e federais a docentes da CNTE que bloqueavam uma estrada resultou em onze mortes de civis e centenas de pessoas feridas.

As aberturas para diálogo oferecidas pelo governo mexicano são explicitamente colocadas como excluindo qualquer debate sobre a reforma educacional. A CNTE segue na luta para que a reforma seja suspensa e que demandas do movimento sejam ouvidas. O EZLN se pronunciou dizendo que a reforma nada tem de educacional, pois desconsidera plenamente as pessoas que trabalham na área e suas famílias [5], além de reforçar a crítica ao caráter neoliberal e privatista da reforma, também feita por outros movimentos e pela CNTE. Também se denuncia que a reforma é um ataque aos povos originários, pois deixa de lado os conhecimentos desses povos, as suas culturas e idiomas, as suas formas de organização [6]. A uniformização da educação no país e a negligência total no que diz respeito à preservação e à difusão das culturas dos povos indígenas têm feito com que eles marchem também ao lado de docentes pelo país. Informações sobre os eventos no México ligados às manifestações docentes podem ser encontradas aqui, aqui e aqui (esses dois últimos em espanhol).

Voltando ao comunicado sobre a suspensão da participação zapatista no festival, encontramos o seguinte convite em seu final: “Agora, se perguntam a nós zapatistas, se pensamos que as pessoas devem vir até aqui ou não, é claro que respondemos: venham. Chiapas é um lugar bonito. E agora está mais bonito com a resistência docente florescendo nos caminhos, ruas, estradas e comunidades. Estão se perguntando se, já estando aqui, podem dar uma volta pelos caracóis? Claro que podem. Mas sim, na entrada deles, vão lhes perguntar: “já foram ver os professores e as professoras que estão a resistir?”.

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Notas

[1] http://enlacezapatista.ezln.org.mx/2016/07/06/el-festival-comparte-y-la-solidaridad

[2] O “Sexta” está aí como referência à Sexta Declaração da Selva Lacandona (selva situada no leste do estado de Chiapas). Parte fundamental da história zapatista está contada em suas Declarações. A primeira declarou guerra ao governo mexicano, a segunda se voltava para a sociedade civil, a terceira convocava todos movimentos políticos e sociais independentes a compor o Movimento para a Libertação Nacional. A quarta já declarava a criação da Frente Zapatista de Libertação Nacional, a ser composta por variados indivíduos e movimentos que não desejassem a tomada de poder. A quinta já chamava as várias forças independentes a se somar a um esforço de diálogo pelos direitos dos povos indígenas, visando por fim ao extermínio dos mesmos, mas sem negociar com o governo. Finalmente, a sexta apresentava a Outra Campanha, a construção política por fora da “farsa eleitoral”. As cinco primeiras declarações podem ser encontradas traduzidas para nosso idioma aqui: https://www.nodo50.org/insurgentes/textos/zapatismo/04lacandona.htm. A sexta, aqui: http://www.midiaindependente.org/pt/red/2005/06/321768.shtml

[3] Caracóis são regiões das comunidades zapatistas autônomas, criadas em 2003 para dar outra forma para a organização das mesmas. Nasceram após um amplo exercício crítico sobre a relação dos municípios autônomos zapatistas com o resto da sociedade e sobre sua dinâmica interna. A imagem do caracol, retirada de antigas histórias relatadas pelo Subcomandante Marcos (http://www.nodo50.org/pchiapas/chiapas/documentos/calenda/chiapas.htm), sobre os antigos deuses maias (os “sustentadores do mundo”), remete simbolicamente a coisas como escuta, sair do âmbito do coração para interagir com o mundo, acordos coletivos, dentre outras coisas. “Assim os “Caracóis” serão como portas de entrada para as comunidades e também de saída; como janelas para vermos dentro e fora; como cornetas para levar longe nossas palavras e escutar as que longe estão. E, acima de tudo, para que nos recordemos que devemos velar e estar cientes da plenitude dos mundos que povoam o mundo” (http://www.nodo50.org/pchiapas/chiapas/documentos/calenda/chiapas3.htm). Ao todo, são cinco Caracóis funcionando como “regiões administrativas”.

[4]  http://enlacezapatista.ezln.org.mx/2016/02/29/convocatoria-zapatista-a-actividades-2016

[5] https://desinformemonos.org/no-se-trata-de-mejorar-la-educacion-sino-de-ajustar-la-nomina-ezln

[6] https://desinformemonos.org/se-manifiestan-en-cheran-contra-la-reforma-educativa

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