Hackers: os novos inimigos da humanidade

jul 26, 2019 | Notícias | 0 Comentários

Hostis humani generis ait judex sergius morus

por @rrobinha

Em 1724 foi publicado o livro “História Geral dos Piratas”. Embora o autor original tenha assinado com o nome de “Capitão Charles Johnson”, acadêmicos posteriormente atribuíram o texto ao escritor Daniel Defoe, que naquela época já havia se tornado famoso por ter escrito “Robison Crusoé”. Uma história que inclui o encontro do famoso náufrago com piratas. Hoje em dia, no entanto, essa posição foi novamente revista e ainda hoje há dúvidas sobre quem seria o seu real autor.

Em uma época em que a moda eram os títulos longos, o livro foi originalmente publicado com o título “História geral dos roubos e assassinatos dos mais conhecidos piratas, e também suas regras, sua disciplina e governo desde o seu surgimento e estabelecimento na ilha de Providence em 1717, até o presente ano de 1724. Com as notáveis ações e aventuras de dois piratas do sexo feminino, Mary Read e Anne Bonny antecedida pela narrativa do famoso capitão Avery e de seus comparsas, seguida da forma como ele morreu na Inglaterra”.

O livro, que se tornou conhecido por repercutir as histórias do Barba Negra e outros notórios piratas, tinha como objetivo fornecer subsídios críticos bem fundamentados para a política de destruição definitiva das atividades de pirataria nos mares do caribe, que, em sua maior parte, haviam proliferado graças ao financiamento direto do governo da Inglaterra, que recompensava saques feitos contra navios de outras nações rivais, como a Holanda e a França de modo a atingir a competição no cultivo de açúcar nos mares do caribe, que, devido à sua enorme popularidade e o alto preço que alcançavam na Europa na época, também era conhecido como “ouro branco”.

Até agora, o que vinha acontecendo é que, ao se tolerar que um simples pirata percorresse livremente os mares — como se não merecesse nenhuma atenção por parte dos governos — ele crescia gradativamente até se tornar tão poderoso que, antes que o pudessem eliminar, despendia-se muito sangue e riquezas. Não iremos analisar como se passou o constante crescimento dos nossos piratas nas Índias Ocidentais, até recentemente. Esta investigação cabe à Legislatura, aos representantes do povo no Parlamento, e a deixaremos a seu encargo. – História Geral dos Piratas

Desde o começo das grandes navegações e do consequente processo de colonização, as potências europeias sempre haviam patrocinado piratas como uma forma de garantir controle sobre as rotas marítimas que conduziam até a América ou as Índias, sendo que esse piratas, por terem apoio direto de um soberano, eram chamados de “Corśários” ou “Privateers”.

Em 1713, no entanto, com o fim da Guerra de Sucessão Espanhola foi assinado o Tratado de Utretch, que estabelecia uma série de regras de padronização comércio marítimo, entre elas o fim do patrocínio das atividades de pirataria. A partir daí, os piratas, que antes eram financiados pelo Estado, passaram a ser impiedosamente caçados e passaram ser denominados nos documentos jurídicos como “hostis humani generis”, ou “inimigos da humanidade”, passando a encarnar todos os princípios contrários aos da civilização, de uma maneira muito semelhante à imagem atribuida aos terroristas do 11 de setembro.

Ironicamente, embora tenha sido originalmente desenvolvido como material de propaganda ou difamação contra a atividade, o “História Geral dos Piratas” acabou tendo o efeito reverso ao que era esperado e acabou se tornando um sucesso editorial tão estrondoso e suas histórias tiveram tanta repercussão, que acabaram levando à publicação de um segundo volume que, embora sejam consideradas menos verídicas historicamente, levaram à sedimentação definitiva do mito do pirata na Europa e a publicação de diversas ficções nas décadas seguintes, sendo o mais o conhecido deles o “Ilha do Tesouro”. Todos eles retratados na mesma época do “História Geral dos Piratas”.

Os hackers russos de Araraquara

A História é uma coisa cíclica e frequentemente se repete. Uma coisa que nunca pareceu deixar de existir, no entanto, é a necessidade da civilização (ou ao menos das autoridades que a dirigem) de eleger o inimigo da vez, que passa a encarnar todos os males que impedem o avanço do progresso.

Enquanto que nas eleições do ano passado os inimigos foram os “comunistas”, a moda da vez são os “hackers criminosos”, que teriam supostamente invadido o celular e roubado as mensagens de várias autoridades e as repassado para o site de jornalismo “Intercept Brasil”, que vem trabalhando na divulgação delas em uma série de reportagens com o nome de “Vaza Jato”.

Essas reportagens, por sua vez, vem tornando público algo que sempre foi uma forte suspeita para todos aqueles que acompanharam de perto o julgamento do ex-presidente Lula no caso do triplex do Guarujá: que a condução do caso foi feita de maneira parcial pelo juiz responsável, que trabalhou auxiliando diretamente a promotoria na condução do caso de modo a garantir a condenação do réu, o que acabou impedindo que ele se candidatasse à eleição do ano passado e consequentemente garantindo ao ex-juiz o atual cargo de Ministro da Justiça.

Nesse ponto é importante destacar: não se trata aqui de considerar se o ex-presidente Lula é inocente ou não, se ele estava ciente do caso de corrupção na Petrobrás ou não, mas sim se o juiz que atuou no seu caso ajudou a produzir provas como parte da acusação.

Todas essas questões, que só puderam ser levantadas graças às reportagens do Intercept Brasil, inevitavelmente fazem com que qualquer pessoa lúcida questione diversos elementos da prisão dos tais hackers. Por exemplo, a notícia de que os hackers por trás do vazamento seriam presos pela Polícia Federal já vinha sendo divulgada há muito tempo por veículos pró-governo, como o site Antagonista, mas mesmo assim nenhuma das pessoas presas na operação parece ter ponderado fugir ou sair do país para evitar a prisão.

Independente deles serem os responsáveis ou não, todo o sensacionalismo gerado pela prisão dos supostos “hackers de araraquara” por invadir celulares ilegalmente parece ter feito as pessoas esquecerem que todas as informações obtidas pela Imprensa regularmente sobre a operação Lava Jato também foram vazadas ilegalmente por informantes internos, o que inclui a conversa entre a então Presidente da República Dilma Roussef e o ex-presidente Lula, divulgada de maneira irregular pelo próprio juiz Sérgio Moro, sob o suposto princípio da transparência.

O que temos aqui, portanto, é um caso análogo ao dos Piratas do Caribe, cuja prática que era autorizada e estimulada pelos monarcas passou a ser considerada ilegal. Da mesma maneira, um procedimento que foi praticado a exaustão pelas autoridades judiciais responsáveis pela operação lava-jato com objetivos políticos foi dessa vez replicada pelos supostos hackers. Só que a mesma eficiência praticada na prisão dos hackers não foi praticada na averiguação das informações divulgadas ilegalmente pela Imprensa, mostrando que essa se tornou uma prática válida para apenas um dos lados.

O modo como foi estruturada essa operação torna inevitável lembrar do caso envolvendo os supostos terroristas que teriam sido presos tramando um atentado durante as Olimpíadas no Rio de Janeiro. A prisão desses jovens, que foram os primeiros suspeitos enquadrados na Lei de Anti-terrorismo aprovado durante o governo Dilma, acabou levando à morte de um deles na cadeia por linchamento e no final acabou não dando em nada, pois mais tarde ficou claro que não havia nenhum elemento mais concreto que demonstrasse um interesse real por parte de algum deles em efetuar um atentado.

Da mesma maneira, o maior risco desse tipo de operação conduzida pela Polícia Federal é a possibilidade que isso possa implicar em algum tipo de intenção de envolver politicamente o Intercept Brasil, assim como seu principal patrono, Glenn Greenwald. Algo, que ficou ainda mais patente depois que foi publicada uma portaria facilitando a deportação de estrangeiros em caso de “terrorismo”.

Caso isso ocorra, faria com que as poucas dúvidas que temos de estarmos em algum tipo de regime democrático sejam substituídas pela certeza de que entramos sob a guarda de um novo tipo de pretorianismo conduzido sob a tutela das nossas autoridades políticas.

Especialistas em Direito Comparado consideram que o sistema legal brasileiro, especialmente sua parte processual, carrega muitos vícios do modelo ibérico de Justiça, que, por sua vez, tem fortes laços com o Direito Canônico utilizado posteriormente na Inquisição Espanhola, no qual amplos poderes eram dados ao juiz responsável por conduzir “devassas”, na qual o magistrado atuava concomitantemente tanto como juiz, quanto como investigador e promotor direto da causas.

Todas essas informações, que vem fomentando um amplo debate sobre o papel e a postura muitas vezes política e frequentemente parcial de nossa Justiça e que podem resultar em importantes modificações no nosso sistema legal de modo a deixa-lo mais justo, só foram possíveis porque elas foram disponibilizadas por meio da Imprensa graças ao tal “hacker criminoso”.

Nesse ponto, concordamos com o editor do Intercept Brasil, Leandro Demori: em qualquer país sério, o Ministro Sergio Moro estaria sendo investigado e não conduzindo e tendo acesso a informações em uma investigação sobre a qual há um interesse político direto da parte dele.

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