[Opinião] A escuta autoritária, o falar no lugar do outro.

mar 30, 2017 | Artigos e Publicações, Ativismo, Opinião PIRATA | 0 Comentários

A escuta autoritária, o falar no lugar do outro.
por galdino.

* Este texto não reflete posicionamento do partido, mas se trata de um texto de opinião *

“Afinal, o que é escuta autoritária? Acredito que seja uma postura (bastante comum, todos nós já a tivemos) de escuta, estruturada nas seguintes características:
1-) Escuto buscando o erro no discurso do outro, procurando o que preciso reclamar, o que preciso problematizar, o que está fora do lugar. Não há preocupação em entender, mas em buscar um ataque;
2-) O desprezo apriorístico: “Vai, fala, não deve sair nada bom mesmo, mas não custa deixar falar. Fala aí”;
3-) A escuta temporal: Eu escuto buscando o intervalo em que poderei fazer algum comentário genial, e “lacrar”.
4-) Negação da subjetividade: “É omi, cis, hetero e branco? Morre! Não tem que falar” (Como é que escuta assim, gente?)”

Esse trecho foi retirado de um texto de Helena Vieira, publicado em seu perfil pessoal no Facebook. Embora esse tipo de postura não seja exclusiva de debates políticos, parece que tem se tornado um paradigma consolidado e intensificado nas redes sociais virtuais. Principalmente em redes que oferecem possibilidade de reprodução e “premiação” do discurso (uma curtida no Facebook, no Twitter etc.), existem claras recompensas na busca pelotiming da intervenção “lacradora” – como frases de efeito, o eco virtual é grande e fortalece o ego/Eu da pessoa, não necessariamente de uma forma saudável. Podemos pensar em uma dinâmica de elevação da autoestima pessoal através desse tipo de fortalecimento, algo que pode parecer satisfatório no curto prazo, mas que não resolve realmente o problema, mas o desloca. Mas não é a ideia deste texto desvendar os mecanismos e origens últimas desse tipo de comportamento caracterizado como “escuta autoritária”.

Esses quatro pontos citados, eles podem servir para uma espécie de teste: podemos nos perguntar algo, pensando em cada um deles. 1) “quantas vezes eu fiquei apenas esperando um deslize para enquadrar a pessoa em uma categoria opressora, dando pouca atenção para o diálogo em geral?”; 2) “quantas vezes eu julguei a pessoa desde o início da conversa de forma que nunca encontraria satisfação em qualquer coisa que ela dissesse?”; 3) “quantas vezes eu fiquei torcendo por um tipo de comentário para poder jogar uma resposta “foda” e ganhar o debate?”; 4) “quantas vezes eu me recusei a dar espaço para a pessoa falar por conta de certas características dela, mesmo sem conhecer absolutamente nada sobre a vida da pessoa?”. E por aí vai. Se abaixamos um pouco as muralhas do nosso ego, podemos achar em nossa memória exemplos de diversas coisas assim.

Teve aquele dia que promovemos uma sessão pública de ataques a uma pessoa que nem conhecemos porque ela disse algo que não pegou bem, esquecendo que na semana anterior fizemos algo parecido, mas o que importa mesmo é saber caçar bem um erro no discurso alheio (no nosso nem tanto). E aquela vez que nem queríamos ouvir o que alguém tinha a dizer, mesmo toda pessoa sendo capaz de contribuir com alguma coisa para nossas crenças políticas (nós sequer temos controle de todas as fontes de nossos recursos mentais, e qualquer coisa pode nos estimular a ter um insight a qualquer momento); mas, não poderíamos perder um presa fácil para nossa intervenção, então deixamos a pessoa falar num ato nobre de nossa parte. E, claro, no momento certo, lá estava ela nos dando mais uma oportunidade de mostrar toda nossa grandiosidade política. E aquela vez que negamos a uma pessoa explicações sobre racismo ou machismo porque já tomamos ela como sendo intrinsecamente incapaz de compreender? Aliás, de onde tiramos essa certeza?

Assim como a autora, não gostaria que isto aqui fosse mais uma demonstração de pureza política, comportamental: penso que ninguém consegue se livrar de forma plena e definitiva desse tipo de comportamento enquanto estiver em meios que estimulam sua reprodução. A capacidade de identificar algo problemático, algo que torna cada vez mais insalubre o debate político, não se converte automaticamente em uma transformação espiritual total. Conhecimento não move pessoas. O conhecimento precisa estar integrado de determinada forma com o resto da pessoa (ou também: conhecimento não move pessoas, pessoas movem pessoas). Também não gostaria que isto aqui fosse entendido como um estímulo a certa noção de diálogo, que envolve a ideia de que devemos dialogar com todo mundo sobre tudo, e que o diálogo é o pontapé fundamental de toda transformação política – a demanda por esse universalismo vazio, sem distinções, que busca agrupar toda a espécie humana sob um padrão de racionalidade que reflete apenas um segmento da sociedade; isso não me parece solução pra nada, soa mais como parte do problema. Não vejo sentido algum em exigir das pessoas que sofrem as mais violentas opressões em nossa sociedade, que “se acalmem” e busquem dialogar com seus opressores da forma “pacífica”, “racional” etc. Penso ser preciso também saber ouvir os gritos de dor das pessoas ao nosso redor, e não fechar os ouvidos para qualquer coisa que não venha embalada por esse modelo liberal de diálogo e de racionalidade (a racionalidade do homem branco ocidental, que leva os privilégios do pacifismo e deixa o fardo pro resto carregar).

A questão é mais simples: que, em determinadas ocasiões, seja praticada outra forma de escuta. Esse é um exercício que não se prende exclusivamente ao “diálogo” político com a “sociedade”; para quem se envolve com outras práticas não-autoritárias de escuta, os benefícios gerais desse tipo de mudança talvez sejam mais claros. Ao invés de sermos a pessoa que gera desconforto ao seu redor por incorporar um tribunal em si, deixando pessoas conhecidas, amigas e familiares com medo de emitir qualquer opinião que possa ser analisada e julgada instantaneamente, podemos ser a pessoa que deixa as pessoas tranquilas para expressar pensamentos que talvez sequer estejam concluídos (porque ninguém sabe absolutamente tudo sobre tudo). Ao invés de destilar arrogância pelas redes sociais, podemos ser a pessoa que entende que tem muita gente por aí querendo mudar sua forma de lidar com as minorias de nossa sociedade, e que um dia já estivemos na mesma situação – parte desse comportamento de “escuta autoritária” parece envolver uma postura de “eu nasci sabendo de tudo”, que exige das pessoas acusadas algo que provavelmente não foi exigido de quem acusa (o que talvez seja diferente para as próximas gerações, que já serão inseridas nesse círculo terrível).

Podemos ser a pessoa que não tem um julgamento formado que impede de ouvir o que as pessoas têm a dizer. Podemos não imitar nossa polícia e nosso judiciário. Podemos deixar que as pessoas realmente falem e não tratar o que elas dizem como um ruído qualquer, uma sequência de sons desprovida de qualquer legitimidade, que não precisa ser escutada porque podemos falar em seu lugar. Como podemos criar relações e espaços menos autoritários se somos a autoridade que fala por todo o resto? Quem nos deu essa autoridade, afinal? Quem nos tornou o tribunal do mundo? Quem nos fez a polícia dele? Quem nos fez suas pastores? Por que não escolhemos “profissões” mais interessantes? E aí eu aproveito para falar de uma ideia de Freud, usada amplamente na psicanálise: a atenção flutuante. Esse modelo de atenção, essa postura mental, tem a ver com evitar focar em pontos específicos do discurso da pessoa que está sendo analisada, prestando atenção em tudo sem distinções. Por isso a flutuação. Tem a ver com não interpretar o discurso que escutamos com nossos recursos de forma preconceituosa, ou seja, de forma antecipada. Deixar a pessoa falar e não falar por ela. Não dá pra escutar e julgar ao mesmo tempo (até na justiça que temos, a ordenação burocrática exige que o julgamento se dê depois das pessoas serem ouvidas).

Não digo que devemos transformar o mundo no maior consultório do mundo. Mas penso que essa técnica analítica, se podemos chamar assim, é uma boa inspiração para nossas vidas políticas, e para nossas vidas em geral. Como isso pode se reverter em prática? Se alguém diz, por exemplo, algo que parece machista, racista, ou o que for, podemos perguntar se é aquilo mesmo ou se interpretamos errado. Essa atitude simples poderia evitar uma quantidade enorme de conflitos, desgastes e interações agressivas que servem apenas para que uma parte se sinta bem por ter identificado e denunciado uma opressão. Ainda mais em meios virtuais onde a troca verbal é rápida, instantânea e econômica em termos de significado, o que favorece todo tipo de erro de avaliação do que a pessoa está a falar. Podemos pensar também que nossa pressa em denunciar e contra-atacar (que muitas vezes é apenas atacar) não serve de nada; podemos nos dar um tempo para escutar mais antes de avaliar, pois o “problema” não fugir de nós se não corrermos. Podemos também nos desfazer de nossos critérios de avaliação do discurso alheio, de forma que não coloquemos um padrão de pureza que o resto do mundo nunca vai conseguir alcançar, e que não nos botemos em algum patamar político superior apenas porque, neste exato momento, sabemos melhor sobre opressões e sobre como nos livrar de muitas delas – não, nunca nos livramos totalmente delas.

Podemos ser pessoas menos “puras” e mais humanas, mais passíveis de erro, ignorantes de muitas coisas. A construção de um ideal de ativismo/militância, que pouco contempla o mundo concreto, só pode mesmo gerar frustrações nas pessoas que nunca conseguem (porque nunca vão conseguir cumprir esse ideal a não ser que elas mesmas sejam as acusadoras, e não as acusadas), e um sentimento de superioridade nas que acham que conseguem, dentre outras coisas. Só pode mesmo gerar relações difíceis, insalubres e autoritárias. Precisamos das outras pessoas para nos sentirmos bem, mas é possível fazer isso sem ter de afirmar nossa superioridade sobre elas.

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