[Texto de Opinião]: Estado, Luto e as “vidas vivíveis”.

ago 16, 2016 | Artigos e Publicações, Notícias, Opinião PIRATA | 0 Comentários

por Thais de Bakker e galdino.

“Se houver um obituário, isso quer dizer que houve uma vida, uma vida que vale a pena que se note, uma vida que deve ser valorizada e preservada, uma vida que se qualifica para reconhecimento. Apesar de que podemos argumentar que não seria prático escrever obituários para todas essas pessoas, ou para todas as pessoas, eu acho que temos que perguntar, de novo e de novo, como o obituário funciona como um instrumento através do qual a possibilidade de luto é distribuída publicamente. É o meio pelo qual uma vida se torna, ou falha em se tornar, uma vida publicamente passível de luto, um ícone para auto-reconhecimento nacional, a forma que uma vida se torna notável. Como resultado, temos que considerar o obituário como um ato de construção do Estado. A questão não é simples, porque se uma vida não é passível de luto, não é bem uma vida; não se qualifica como uma vida e não vale uma nota escrita”.
(Judith Butler em “Precarious Life”)

 

No caminho preparatório para os megaeventos realizados no Rio de Janeiro, governos federal, estadual e municipal se uniram para garantir a implementação distópica de um Rio de Janeiro entregue de forma cada vez mais profunda ao abismo da especulação imobiliária, aos desmandos de máfias locais e nacionais, à livre violência de forças policiais, ao genocídio da população negra de favelas e periferias. Os processos de gentrificação da cidade foram ampliados para escalas absurdas, mais de 70 mil pessoas foram removidas de suas casas desde 2009 (o ano da escolha do Rio como sede dos Jogos Olímpicos), as intervenções militares permanentes de “pacificação” se expandiram deixando rios de sangue favelado onde se instalou e contribuíram para o aumento dos valores de aluguel nas áreas “pacificadas” (“Guerra é Paz / Liberdade é Escravidão / Ignorância é Força” – 1984), crimes ambientais foram cometidos como se fossem atos corriqueiros em nome do progresso urbano etc. Não é possível listar num artigo como este todas as atrocidades cometidas em nome dos Jogos Olímpicos e da Copa do Mundo de 2014.

Recentemente, um traficante altamente procurado escapou de um hospital onde estava em custódia da Polícia Militar, o que desencadeou uma busca violenta por ele em diversas favelas cariocas. Uma reportagem do Estadão noticiou, em 29 de junho, que “caçada por traficante já provocou 9 mortes no Rio de Janeiro”. Sobre as mortes, não há nomes, histórias ou idades das vítimas, apenas declarações como “as vítimas seriam traficantes segundo a Polícia”, “as vítimas eram suspeitas de tráfico”, e “a vítima também seria traficante”. O luto não é para “traficantes”, ou sequer para “suspeitos de tráfico”; tampouco há qualquer julgamento real para além dos entendimentos das forças policiais e do oligopólio midiático. Nossos procedimentos são procedimentos de guerra. E o nome que encontramos na matéria é este: “A ação policial também tem o objetivo de prender os criminosos envolvidos na morte da médica Gisele Palhares Gouvêa, de 34 anos”. A médica teve direito a ter suas informações veiculadas para que a sociedade pudesse oferecer luto por ela.

No ano passado, o jornal O Globo fez uma série de reportagens (que também virou exposição no Centro Cultural da Justiça Federal) chamada “Dez crimes que chocaram o Rio de Janeiro”. A série destacava dez crimes, sendo nove assassinatos, sete dos quais vitimaram mulheres, o mesmo número também de pessoas brancas, a maioria de classe média pra cima (incluindo celebridades como Ângela Diniz e Daniella Perez). Um dos casos presentes na reportagem foi a chacina de Vigário Geral, sob o título “O dia da barbárie”. Vinte e uma pessoas foram fuziladas nessa favela, em 1993, por causa de um conflito entre policiais e traficantes, em que aproximadamente cinquenta policiais invadiram a favela e realizaram o massacre para vingar a morte de quatro outros policiais, assassinados por traficantes locais. O jornal responsabiliza o que chama de “banda podre da corporação” pelos crimes. Sugere-se um dia excepcional nas incursões policiais em favelas, um “dia de barbárie” onde finalmente foi possível dizer que inocentes morreram (“Sem ligação com o tráfico, tiveram o azar de estar no lugar errado, na hora errada”), fruto da corrupção de alguns. Na verdade, dentre todos os casos mencionados, esse é o único que se aproxima da realidade carioca: execuções arbitrárias, confronto de policiais com traficantes, balas voando, vítimas pobres e negras. Curiosamente, a série alcança casos na década de 1960, apresentando uma linha temporal bem extensa. Tirando a chacina relatada, foram mesmo esses os grandes crimes que chocaram o Rio de Janeiro? Ou foram os crimes escolhidos em suas épocas para chocar o Rio de Janeiro através da manipulação do luto público?

A “barbárie” é uma condição sistêmica do Estado brasileiro, vide o outro tipo de genocídio que faz parte da realidade do país há centenas de anos: o dos povos indígenas. Não se trata de um dia a ser lamentado e esquecido. Os casos escolhidos cuidadosamente pelo trabalho editorial do oligopólio midiático são aqueles julgados dignos de memória, indignação, tristeza, choro e luto. São casos que contam histórias trágicas, cheias de informações, oferecendo rostos passíveis de pena e empatia. A mobilização do luto público e o gerenciamento da memória no Rio de Janeiro dizem respeito a uma pequena parcela de sua população, justamente aquela mais longe de situações de vida profundamente precárias, que podem se dar o luxo de viver sem ameaças constantes de morte a todo passo que dão, fora da sombra do Estado de Exceção. As mortes de pessoas pobres e negras nada possuem de memoráveis para o Estado, são tratadas como incidentes diários ou danos colaterais da guerra.

Através da evocação da Guerra às Drogas, certas vidas passam a valer menos. Tornam-se menos dignas ou até passíveis de serem vividas. A figura mítica do traficante assume a forma de ameaça à integridade nacional, podendo ser eliminada sem maiores explicações. As vidas que valem menos, que não são choráveis para o Estado e para seu braço midiático, acabam sendo remetidas a essa figura de tal forma que pessoas negras e pobres em geral, principalmente jovens moradores de favelas e periferias, sejam enquadradas como “traficantes”, “suspeitas de terem ligação com o tráfico”, e por aí vai. Da mesma forma, pessoas árabes são enquadradas tendo em vista a figura do “terrorista” em países europeus ou nos EUA. Contra elas também são justificadas todo tipo de arbitrariedade simplesmente por conta desse enquadramento: execuções, tortura, invasões domiciliares, cerceamento ao direito de ir e vir, humilhações, assédio moral e sexual, encarceramento – e tudo isso sem qualquer tipo de documento jurídico, suporte constitucional ou o que quer que seja. Já estamos vivendo no Brasil algo da Guerra ao Terror, vide o tratamento dispensado a pessoas consideradas “suspeitas de planejar atos terroristas” (confira mais sobre esses acontecimentos aqui).

Para terminar e retornar aos Jogos Olímpicos, oficiais da Força Nacional entraram no Complexo da Maré dias atrás e tiveram seu veículo metralhado, um deles sendo atingido na cabeça. Levado ao hospital, não sobreviveu, o que fez o governo de Roraima (seu local de origem) decretar luto oficial, assim como o governo federal:

“Considerando o alto nível de excelência e a importância do trabalho desenvolvido por aqueles que se dedicam diuturnamente a garantir a segurança dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos Rio 2016 e a zelar pela manutenção da lei e da ordem no País,
DECRETA:
Art. 1º É declarado luto oficial em todo País, pelo período de um dia, contado a partir da data de edição deste Decreto, em sinal de pesar pelo falecimento do Soldado Hélio Vieira Andrade, da Polícia Militar do Estado de Roraima, que, não hesitando em cumprir o seu dever, foi vitimado em atuação efetiva durante operação da Força Nacional de Segurança Pública nos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos Rio 2016.
Art. 2º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 11 de agosto de 2016; 195º da Independência e 128º da República”.

Em seu perfil oficial, o Ministro do Terror Alexandre de Moraes escreveu:

“Quero expressar meus sentimentos aos familiares do soldado Hélio Vieira, que sofreu um ataque covarde e, infelizmente, morreu hoje em decorrência dos ferimentos.
Soldado Vieira é um verdadeiro herói do nosso País. Nosso Presidente da República, Michel Temer, decretará luto oficial pela morte de nosso herói. Honra e Dignidade aos nossos policiais”.

Três dias de luto pelo oficial da Força Nacional. Seu nome e história já ecoam pelos jornais do país. Enquanto isso, os rios de sangue continuam a correr nas favelas do Rio, sangue de pessoas desconhecidas, cujas vidas o Estado não reconhece como “vivíveis” e dignas de luto, vidas não-choráveis para nossas instituições. Luto declarado para o “herói” que morreu pela segurança de seu país, mas jamais pelas pessoas inimigas do Estado-Nação brasileiro.

“Solidariedade a família do soldado que morreu nesse estado falido e insano, mas, solidariedade maior, aos jovens que ontem morreram com ações truculenta dos agentes do estado, aqui na Maré e Bandeira 2. Solidariedade aos moradores do Alemão, de Manguinhos, do Borel, da Cidade de Deus, de Acari, que sofreram e sofrem com essas operações quase todo santo dia, solidariedades à todas as Favelas.
ISSO NÃO TRÁS COMOÇÃO PÚBLICA, NÉ?!
QUANTO CUSTAM ESTAS TRÁGICAS OPERAÇÕES?
Vivemos numa das cidades mais turbulentas, corrupta e opressora, que esquece de nossas histórias e faz dela um Boulevard. Aqui nessa maldita “guerra aos pobres”, camuflada de guerra as drogas. AINDA NÃO ENTENDEU?
NÓS NÃO MERECEMOS MORRER!” (Trecho de post retirado da página Maré Vive).

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