Como a música ficou grátis: Uma mudança sem volta

nov 25, 2015 | Artigos e Publicações, Compartilhamento de arquivos, Entrevistas, Notícias | 1 Comentário

via Intrínsica

Stephen Witt, autor de Como a música ficou grátis, explica como o digital mudará ainda mais nossa relação com a cultura

Por Alexandre Matias*

Stephen Witt por Mike McGregor/The Observer

Stephen Witt por Mike McGregor/The Observer

Um alemão e dois norte-americanos funcionam como os principais personagens do primeiro livro do jornalista Stephen Witt, Como a música ficou grátis: O fim de uma indústria, a virada do século e o paciente zero da pirataria. A obra acompanha a trajetória de três sujeitos completamente diferentes: o cientista Karlheinz Brandenburg, o operário Dell Glover e o executivo Doug Morris.

Como a música ficou grátis - CAPA simulação.inddO primeiro passa mais de uma década debruçado na possibilidade de reduzir o tamanho de ondas sonoras para o formato digital, sofrendo cobranças e derrotas ao tentar transformar o MP3, um formato de áudio desenvolvido por um instituto de pesquisas governamental, em algo que possa ser explorado comercialmente. O segundo trabalha em uma fábrica de CDs da PolyGram, no estado norte-americano da Carolina do Norte, empacotando produtos que serão lançados semanas depois de passar por suas mãos. O terceiro começa a ascender profissionalmente quando entende que os álbuns mais vendidos não são necessariamente os melhores, e se torna um dos maiores executivos que a indústria fonográfica já viu.

São três biografias que se misturam à medida em que a web e a banda larga se popularizam, no final do século passado, e, como anuncia a contracapa do livro, quando uma geração inteira passa a cometer o mesmo crime: baixar músicas de graça da internet. As mudanças transformam Brandenburg em um visionário e Morris em um pária dos negócios. Mas talvez a história mais intrigante narrada por Witt seja a de Glover, a quem se refere como “paciente zero da pirataria” — o primeiro sujeito a fazer os álbuns aparecerem on-line antes mesmo de chegarem às lojas, matando o CD e dando início à revolução digital.

Como a música ficou grátis é um raio X de uma era crucial não apenas na transformação (ainda em curso) da indústria fonográfica, mas também para entendermos outras mudanças (e polêmicas) causadas pela vida digital em áreas que não têm nada a ver com música — como o aplicativo Uber em contraponto à profissão de taxista, o serviço Netflix comparado à televisão tradicional ou o programa de troca de mensagens instantâneas WhatsApp como alternativa às operadoras de telefonia. Ao focar nos três personagens escolhidos, Witt vai além da invenção do Napster ou do processo contra  os hackers do The Pirate Bay para mostrar que essas transformações, na verdade, podem acontecer no coração da própria indústria. Conversei com o autor pelo telefone.

Karlheinz Brandenburg

O cientista Karlheinz Brandenburg por Fraunhofer IDMT

Alexandre Matias – No seu livro você conta a história de três figuras incríveis que não conhecíamos tão profundamente até a publicação. Qual delas você considera a mais importante?
Stephen Witt – A história de Dell Glover, que durante sete anos trabalhou em uma fábrica de CDs e vazou dois mil discos na internet, é incrível. Como ele trabalhava na linha de produção e tinha acesso a CDs às vezes meses antes do lançamento, ele acabou se tornando o ponto de origem de literalmente centenas de milhões de arquivos de MP3 que enchiam iPods por todo o planeta. Se os leitores têm alguns MP3 em seus computadores que eles não sabem de onde vêm, é provável que tenham saído dos vazamentos que Dell realizou no início da década passada. Ele é um cara fascinante, uma das melhores pessoas que eu conheço — e ninguém sabia de sua história.

Matias – Dell não estava sozinho nessa rede.
Witt – Sim, como digo no livro, era uma conspiração: havia caras no Japão que conseguiam CDs que eram lançados lá semanas antes do resto do mundo. Havia jornalistas britânicos que recebiam CDs antes do lançamento para escrever resenhas e acabavam vazando esse conteúdo on-line. Apresentadores de rádio, DJs. Havia caras na Itália que lidavam com a parte promocional na Europa… Era literalmente global.

E isso não acontecia só na música, mas também em outras áreas. Havia caras que entravam nos cinemas com filmadoras ou que conseguiam as cópias dos filmes destinadas aos jurados do Oscar. Tinha os que craqueavam DVDs e videogames e gente que trabalhava em emissoras de TV a cabo, que disponibilizavam, programas de TV on-line gratuitamente. Esse movimento se autodenominava The Scene (A Cena) e dispunha de pessoas espalhadas por todo o mundo, lidando com todo tipo de mídia.

Matias – É interessante notar como a internet nunca foi vista como uma ameaça pela indústria dos CDs.
Witt – A indústria andava bem preocupada com o gravador de compact discs porque sempre se preocupou com pirataria. Mas eles estavam tão focados nos gravadores que deixaram o MP3 passar. Se você for ler sobre quais eram os riscos que esses negócios temiam no final dos anos 90, vai ver que eles constantemente estavam preocupados com o gravador de CDs e nem sequer mencionavam o MP3. É porque isso já havia acontecido antes, nos anos 80, com o lançamento dos gravadores de fitas cassete com duplo deck, que permitiam às pessoas fazer quantas cópias quisessem. Aquilo afetou os lucros como eles achavam que o gravador de CDs fosse afetar.

O pirata Dell Glover por Jehad NGA/ The New Yorker

O pirata Dell Glover por Jehad NGA/ The New Yorker

Matias – Essa falta de percepção mudou completamente o mercado a ponto de tornar as grandes gravadoras obsoletas — pelo menos como as conhecíamos. Mas elas ainda são uma parte importante do mercado, diferentemente do que ouvíamos falar há dez anos, que a internet mataria a música…

Witt – Hoje em dia é muito mais fácil você trabalhar com música sem ter que se envolver com uma grande gravadora. Mas o lado ruim é que tem cada vez mais gente se lançando, são dezenas de milhares de álbuns novos todos os anos e eu nem sei por onde começar. O que a gravadora fazia, historicamente, era ter alguém que cuidava da direção artística, o cara de A&R (artistas e repertório), que funcionava como um filtro. Era um sistema muito corrupto, sei que não era o melhor cenário, mas era assim que eles faziam.

Agora é muito mais difícil conseguir se fazer ouvir no meio de tanto ruído, mesmo que seu trabalho seja incrível. Além disso, as gravadoras contam com marketing, publicidade, distribuição, desenvolvimento de carreira… Coisas que os artistas ainda querem. Consigo pensar em pouquíssimos artistas que realmente dispensam esse tipo de trabalho.

Matias – A internet acabou sendo uma desculpa perfeita para um modelo de negócios que vivia uma bolha financeira que inevitavelmente estouraria…
Witt – Olha só o que acontecia: por um bom tempo, eles vendiam álbuns ou compact discs com uma margem de lucro enorme. Nos Estados Unidos, um CD que era vendido por cerca de 14 ou 15 dólares custava 1 ou 2 dólares para ser produzido. E muitas dessas empresas eram movidas por artistas de um hit só, que tocavam muitas vezes no rádio. Dessa forma, as pessoas gastavam 14 ou 15 dólares em um disco que tinha uma ou duas músicas que elas realmente queriam ouvir. E as outras faixas nem eram ouvidas.

A mudança para o digital significou o fim dessa lógica. Se um artista só tinha um hit, você não precisava comprar o disco inteiro, e foi isso que matou o negócio. Na era do streaming, as pessoas pagam exatamente pelo que ouvem, e nada mais. Do ponto de vista do ouvinte é ótimo, é um bom negócio. Do ponto de vista da indústria é péssimo, porque todas aquelas músicas ruins que estavam sendo vendidas quase como lucro não serão tocadas nem farão dinheiro. Não há mais como disfarça-la.

Matias – A tecnologia também permitiu que mais gente conseguisse gravar com um padrão de qualidade antes restrito a poucos agentes da indústria fonográfica.
Witt – Sim. Se você olhar para sites como Soundcloud ou Mixcloud, a maioria dos artistas que estão hospedados ali é de amadores. Gente que ama música e que coloca suas faixas ali. Claro que alguns estão tentando fazer carreira como DJ, mas a maioria está lá apenas pela diversão. E como você disse, antigamente era preciso um estúdio grande e caro para conseguir boas gravações, mas agora é possível recriar toda essa tecnologia num laptop. Você baixa, sei lá, uma versão pirata do programa Live Ableton e dispõe da mesma tecnologia de ponta que um produtor classe A. É muito mais fácil, é realmente a democratização da cultura.

Matias – E o que você acha que aconteceu com a produção musical após essa mudança?
Witt – Acho que duas coisas estão acontecendo. Em termos de produção nós estamos em um estágio revolucionário. Há pessoas que estão fazendo coisas com áudio que não eram possíveis anteriormente e há muita gente experimentando, o que acho ótimo, é muito inventivo do ponto de vista sônico. O lado humano, por outro lado, se tornou completamente comercial, ninguém mais corre riscos artísticos, como os que Bob Dylan ou, do ponto de vista de vocês, brasileiros, Caetano Veloso, costumava correr. Não há mais ninguém assim atualmente. Talvez você tenha um Kanye West, mas ele não está correndo os mesmos riscos. Por isso a mensagem se tornou totalmente comercial e muito uniforme, a ponto de ser entediante. Então, ao mesmo tempo, estamos numa época sonicamente brilhante, e do ponto de vista lírico, bem rala.

O executivo Doug Morris por Sara Krulwich/The New York Times

O executivo Doug Morris por Sara Krulwich/The New York Times

Matias – Falamos hoje muito sobre a “revolução” da internet, mas toda a história da indústria fonográfica é composta por tecnologias que foram tão revolucionárias em seu tempo quanto a internet é hoje — pelo menos em relação à música.
Witt – Você está coberto de razão. Imagine ouvir o som gravado pela primeira vez — foi ainda mais revolucionário. Isso só aconteceu no começo do século XX. Minha geração já passou por quatro mudanças de formato: vinil para CD, CD para MP3 e agora MP3 para streaming. Cada uma dessas mudanças mexe não só na forma como as pessoas consomem a música, mas também na forma como a produzem.

Eu concordo que atualmente, principalmente agora, passados 15, 20 anos desde que começamos a usar a internet, as pessoas comecem a ter (não sei se é um movimento reacionário) uma espécie de ressaca. Houve essa abordagem “revolucionária”, que as pessoas compraram quando ouviram dizer que a rede mudaria suas vidas — o que realmente aconteceu. Agora tem muita gente se perguntando se valeu à pena. As pessoas estão começando a se sentir oprimidas pela internet e a música é uma das áreas em que vemos isso acontecendo.

Mas acho que é parte da história da tecnologia da gravação de áudio. Ela só tem cem anos e já passou por mudanças radicais. Acredito que os formatos estejam evoluindo para outra coisa, bem diferente de um suporte de armazenamento físico que você vai lá e compra. Não seriam nem algo que você possa possuir. É como se fossem uma utilidade, algo que você paga pela utilização, mais ou menos como a energia elétrica.

link-externoLeia um trecho de Como a música ficou grátis: O fim de uma indústria, a virada do século e o paciente zero da pirataria

Alexandre Matias, 40, é jornalista há vinte anos e cobre música, cultura e tecnologia para diversos veículos, com base em seu site pessoal, o Trabalho Sujo.

1 Comentário

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Pular para o conteúdo