“A Política dos Piratas” – Entrevista Rodrigo Saturnino

set 28, 2015 | Artigos e Publicações, Notícias | 0 Comentários

 

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“A política dos piratas, Informação, culturas digitais e identidades políticas”. Esse é o nome da Tese de Doutorado defendida recentemente por Rodrigo Saturnino no programa de Sociologia da Universidade de Lisboa. Nessa tese o autor narra e aborda os diversos elementos que compõem a identidade política e cultural dos movimentos piratas e Partidos Piratas com foco especial para o Brasil e Portugal, mas também focando no resto do mundo.

Com o objetivo de expor esse trabalho para um público mais amplo, fizemos uma entrevista com perguntas abordando diversos pontos da sua tese.

Você começa sua tese analisando algumas poesias de Fernando de Pessoa (Ode Triunfal e Ode Marítima) nas quais seu heterônimo, o engenheiro Álvaro de Campos, exalta os ideais de liberdade que os Piratas encarnam. Você acredita que a figura do Pirata presente nos Movimentos Piratas tem embutida nela essa idéia do sujeito civilizado flertar com seu lado mais livre e selvagem que as sociedades urbanizadas acabaram deixando de lado?

A encarnação dos ideais piráticos no cotidiano destes movimentos age como um símbolo de resistência e de contestação de padrões e normas que excluem diferenças, discriminam estilos de vidas mais invulgares e desprezam formas alternativas de pensamento.

O que o movimento pirata fez foi um reaproveitamento ideológico das premissas que organizavam a dinâmica social dos piratas do mar, como a quebra de monopólios dos meios de transportes, o trabalho colaborativo e a participação coletiva, para não só justificar tal encarnação desta figura na identidade do grupo, mas também para torná-la em uma marca distintiva facilmente reconhecida por qualquer pessoa.

E nessa metáfora o Mar seria a Internet, um ambiente inexplorado, sem limites, fronteiras ou nacionalidades?

A metáfora é um pouco idílica e até meio perigosa. Como um espaço de livre circulação, a internet é como o mar, como o ar e o espaço sideral. No entanto, tal liberdade tem sido utilizada de modo muito diversificado e adverso servindo, muitas vezes, como desculpa para justificar a sua mercantilização, a violação de direitos civis, o desrespeito das liberdades individuais, o incitamento de ódio e o aumento de preconceitos.

Acho que há uma diferença sensível entre compreender a internet como um território de ninguém e como um espaço de livre circulação da informação. Não se pode desconsiderar como as nossas sociedades se organizam e por isso, para evitar alguns abusos que emergem da má compreensão da liberdade, é importante insistir em marcos regulatórios que estabeleçam harmonias mínimas entre os diferentes interesses e usos que compõem as nossas interpretações sobre a internet.

Você também esmiuça sobre como a Internet provocou um forte impacto tanto sobre a Economia quanto a Política, se tornando uma espécie de pano de fundo de sustentação para uma nova política para a vida humana. Então o simples ato de trocar informação na rede é um ato político?

Se a gente pensar o político como a Chantal Mouffe descreve, ou seja, uma prática diária que está presente em muitos dos nossos atos do dia-a-dia, em países em que o acesso à informação é proibido ou é fortemente controlado por governos ditatoriais, o simples ato de trocá-la através da internet pode ser considerado como uma ação política.

É uma transformação do “compartilhar é cuidar” em “compartilhar é lutar”.

Você elenca bastante o papel da Cibernética em sua tese, principalmente a partir do trabalho de Norbert Wiener e do modo como ele compara Inteligências Artificiais e Sistemas de Informação com a própria sociedade. Você pode explicar melhor sobre o que é e como a Cibernética e as ideias de Wiener se aplicam nos dias de hoje?

A ideia principal da cibernética é que o mundo, tanto social, animal ou maquínico, é regido por sistemas de comunicação e por trocas de informação (as mensagens). Do ponto de vista social, o objetivo da cibernética é, basicamente, colaborar na criação de mecanismos teóricos e empíricos que proporcionem estados de equilíbrio. Para Wiener, tal equilíbrio só poderia se alcançado através do controle, ou seja, de uma constante regulação das trocas de mensagens entre os participantes do sistema a fim de evitar ou diminuir o caos, a confusão e a desordem.

Não se trata de um controle para dominar ou reprimir, mas uma regulação destinada a promover harmonias. As teorias ciberneticistas foram vastamente utilizadas por cientistas sociais, como o caso de Margaret Mead que chegou a utilizar os pressupostos da cibernética pra criar modelos de saúde mental a fim de contrariar, por exemplo, o marxismo.

Ela acreditava que os conflitos sociais não eram causados por políticas mal feitas, mas pela falta de controle das mensagens fornecidas aos indivíduos. Hoje em dia, o exemplo mais evidente da herança da cibernética é a elevação da informação como sinônimo de poder. Veja bem, ao admitirmos que ela representa o “sangue” que circula nas redes de comunicação e que dela dependemos para apreender os sentidos do mundo, a sua apropriação, a sua privatização, o seu domínio de modo contrário às proposições de Wiener (regular para harmonizar), tem demonstrado como as proposições da cibernética acabaram corrompidas por interesses privados.

Um tema recorrente da sua tese é a ambiguidade simbólica da Internet enquanto meio de comunicação, pois ela funciona como uma rede de fuga e de resistência político-estética, mas faz isso estimulando o “consumo invisível”, que está relacionado à auto-promoção pessoal. Afinal, a Internet estimula o individualismo ou ela une e empodera as pessoas?

A internet é um meio de comunicação ambivalente. Pode servir para estimular o individualismo, pode unir e empoderar pessoas, como também pode servir para o controle social, a vigilância e o enriquecimento de grandes empresas. Há um chavão sobre a internet que diz que ela não é boa, não é má nem é neutra. E o chavão, como todo ditado popular, tem sua parte de verdade.

Essa ideia de que a internet é isso ou aquilo, de que ela faz das pessoas seres humanos infelizes, sem capacidade crítica ou sujeitos isolados é herança de uma tecnofobia que a antecede. A internet reflete a nossa complexidade social de ser, de lutar e de existir. Como referi acima, um desafio que está à frente de movimentos como o dos Partidos Piratas é o de conseguir promover políticas e leis que consigam garantir que as formas multifacetadas de sua utilização não sejam reduzidas, privatizadas nem muito menos empregadas como formas de violação de direitos fundamentais como o da privacidade.

Outro aspecto interessante da Internet como meio de linguagem simbólica que você destacou é a natureza e a subjetividade rizomática da Internet. Você pode explicar melhor esse conceito?

A subjetividade rizomática é um valor atribuído a Internet devido a sua capacidade de proporcionar variados modos de sua utilização. Embora existam rotinas para o seu uso, ao consideramos que ela encarna a qualidade de uma rede, ou seja, sem um centro determinado de onde parte uma ação, concordamos que ela é um meio que permite interações descentralizadas.

Isso não implica dizer que ela providencie um caos ou um estado de anarquia social. O rizoma providencia condições para organizar os fluxos de um sistema complexo, e assim promover um certo tipo de controle das interações, como também ajudar a fomentar espaços de fuga.

Em relação à Economia, você invoca o conceito de “Destruição Criativa” de Schumpeter de que a Internet permite a descentralização dos processos de produção e a destruição de antigos monopólios e modelos de negócio, mas em outro trecho você destaca que ela também promove à criação de novos monopólios digitais. Afinal, a Internet promove a centralização ou a descentralização das atividades econômicas?

A internet promove as duas coisas e pode ser entendida como um recurso de inovação e renovação do sistema capitalista no jogo de centralização e descentralização. A destruição criativa de Schumpeter pressupõe esse processo cíclico envolvendo a criação e a destruição como elementos cruciais para a vida do capitalismo.

Veja, por exemplo, como o modelo dos monopólios da música tem sido gradativamente desmantelado por novas formas de negócio baseados no streaming. Veja também como ela tem favorecido a criação de novos tipos de atividades econômicas baseados na ideia da economia da compartilha, diminuindo o domínio de empresas hoteleiras ou companhias de transportes públicos.

A própria ideia de pirataria digital é fundamental neste processo. A internet acabou proporcionando a criação de um tipo de falha no mercado ao permitir que a gente, que qualquer pessoa, participe do processo de circulação da informação. Essa falha, embora seja utilizada como justificativa para a criação de leis e acordos internacionais contra a pirataria, não só providenciou a criação de novos caminhos para o consumo da informação (Spotify, Netflix, entre outros), como também tem colaborado para reduzir a força de antigos monopólios.

Ao começar a analisar a questão da Pirataria Digital você parece se perguntar se a defesa da Pirataria Digital é efetivamente uma atitude política contestadora e pelo acesso de informação ou a defesa de um consumo hedonista ou do acesso do entretenimento. Essa ambiguidade se resolve em algum momento?

Acho que o surgimento do Partido Pirata no mundo trouxe um momento de conversão destas duas perspectivas. A ambiguidade não tem que se resolver em nenhum momento. Acho que o hedonismo consumista, o acesso ao entretenimento e a fome de cultura foram aspectos fundamentais para transformar a “pirataria” em uma causa política.

A criação do Piratbyrån (Agência Pirata), o julgamento do The Pirate Bay e o surgimento do Partido Pirata na Suécia nos ajuda a compreender como o livre acesso à cultura através da internet foi conduzido para o campo da luta política a partir de um entendimento comum de que o seu bloqueio não só representava uma ameaça ao desenvolvimento sócio-cultural daquele país, como também uma violação de direitos civis, como o da autonomia, a autodeterminação das pessoas e a privacidade pessoal.

Ao analisar a “política pirata” você enquadra o Partido Pirata como parte dos “Novos Movimentos Sociais”. O que faz ele se encaixar nessa categoria?

Esse conceito de Novos Movimentos Sociais (NMS) é utilizado para descrever movimentos que estão interessados na defesa de interesses que ultrapassam os objetivos das reivindicações que marcaram, por exemplo, as mobilizações dos movimentos trabalhistas da década de 1960 e 1970.

O protagonismo dos NMS, como o do feminismo, do meio-ambiente, do movimento negro e do LGBT, é marcado pela luta por um reconhecimento social da suas respectivas identidades. É neste sentido que o movimento pirata pode ser pensado por esta via na medida em que o seu esforço centraliza-se também na afirmação de novas identidades políticas através da organização de novos valores éticos e morais de modo que estes sejam admitidos como direitos civis, como o direito ao livre acesso à informação.

Você fala que o movimento Pirata tem muito dessa natureza ligada ao ativismo Hacker, o que você chamou do “Do It Yourself”, como você acha que essa forma improvisada de fazer política pode se adequar dentro do ambiente político e institucional mais profissionalizado?

Já encontramos casos em que o modelo clássico de se fazer política tem sido afetado por novas formas de trabalho orientadas por elementos da cultura hacker, como a colaboratividade. Os hackathons realizados em parceria com instituições políticas e empresariais são bons exemplos para demonstrar isso.

Aos poucos, os políticos profissionais começam a compreender a importância de tornar o ambiente “duro e sério” da política em um espaço de compartilhamento de experiências e aprendizado entre burocratas, empresários, programadores e cidadãos a fim de melhorar a identificação de questões políticas urgentes e a criação de formas para resolvê-las.

Outro traço da pauta pirata é o que você chamou de micro-política, que é aquela política que foca nas micro-tensões de poder local. Você acha que esse tipo de pauta tem espaço em um ambiente político tão centralizado e focado na esfera federal quanto o Brasil?

O espaço vai sendo constituído na medida em que as pessoas passam a compreender que os atos políticos não devem estar atrelados à vida política profissional. Essas alterações já estão evidentes, por exemplo, através de diversas intervenções que são feitas por pessoas comuns que se juntam por um causa que acreditam. A centralização da política no Brasil dificilmente será completamente extinta.

No entanto, as interposições que presenciamos através do uso das redes sociais por grupos e ativistas sociais têm demonstrado que a micro-política tem algo de eficaz.

A pauta pirata parece não focar nas questões políticas clássicas como a luta de classes, mas sim à inclusão de grupos e temas considerados dissidentes ao padrão normativo da sociedade, como os gays, transex, usuários de drogas, etc. Mas é possível mobilizar e até mesmo unir grupos sociais tão divergentes em uma pauta única e comum?

Acho que sim. A primeira luta que une estes grupos é a afirmação de uma ética comum e uma identidade própria.

Sua tese aborda muitos temas da pós-modernidade, ou seja, de um questionamento não sobre sociedade, mas sobre uma crise da identidade individual. Mas esse tipo de questionamento mais existencialista tem espaço no campo político e, principalmente, em um país com tantos problemas sociais como o Brasil? Não seria mais um tema para o primeiro mundo e a Europa?

A Marcha das Vadias, o dia do Orgulho Crespo, a Marcha Trans e por aí afora só ajudam a confirmar que o Brasil também enfrenta uma crise que é identitária. A ausência de reconhecimento das várias identidades que compõem o Brasil tem incomodado muita gente. Gente que tem feito da diferença o cais ideológico para a sua luta política. Escamotear que o Brasil não é um país da fobias sociais (racismo, machismo, homo e transfobia, entre outros) e negar o quanto as desqualificações da diversidade de identidades afetam a construção do bem-estar social é um estratagema perigoso que acaba por manter os monopólios da normalidade.

De maneira geral você elogiou o Partido Pirata Brasileiro por buscar ser aberto e transparente, mas também comentou das dificuldades de conseguir estruturar e organizar uma cultura organizacional e uma estrutura burocrática mínima. Isso tem algo a ver com a “lógica da indisciplina” que você identificou como parte da política Pirata? É possível conciliar o utopismo tecnológico com medidas de caráter mais prático?

A lógica da indisciplina, um termo utilizado pelo Michel de Certeau, não se relaciona com a falta de disciplina ou a ausência de organização. Refere-se a formas de resistência sociais. Eu percebo que existe alguma dificuldade em conciliar utopias da liberdade com realidades burocráticas. Como ser livre sem se submeter a hierarquias? Como ser transparente sem ferir a privacidade organizacional? Como garantir a democracia popular se tantos cidadãos e cidadãs não querem se engajar?

As dificuldades enfrentadas por partidos políticos em estado embrionário como o Partido Pirata do Brasil parece revelar o quanto o jogo político está organizado para admitir apenas estruturas burocráticas bem definidas e o quanto a forma de se jogá-lo está imbricada no nosso cotidiano social. Acho que algumas das dificuldades enfrentadas pelos piratas brasileiros, nomeadamente no âmbito da sua organização, deve-se a uma certa demora ética em transformar a utopia em uma ideologia e, desta forma, assumi-la como uma mais-valia para alcançar seus objetivos. O “mimimi” utópico não se realiza.

Outro problema que você destacou e que ocorre com o Partido Pirata mundialmente é a dificuldade dele conseguir desenvolver uma pauta mais ampla, que normalmente se concentra na questão de compartilhamento de informação, direitos autorais e vigilância governamental. Você acha possível ampliarmos essa pauta com base em um símbolo tão ambíguo quanto o Pirata?

Como eu disse no decorrer da entrevista, algumas ambiguidades não tem que se resolver de modo definitivo. O seu caráter dúbio pode ser útil para o curioso. No Brasil e em Portugal acho que o trabalho será mais demorado. A imagem do pirata ainda continua a ser vista pela via da jocosidade e pela falta de seriedade. No entanto, em alguns países como a Alemanha, a Suécia e a Islândia, os Partidos Piratas têm utilizado as premissas basilares do movimento como ponte ideológica para a elaboração de programas mais amplos baseados nos ideais piráticos de liberdade, colaboratividade e participação democrática.

O que torna esse exercício interessante é o fato dos piratas apoiarem-se na quebra de monopólios como um importante ponto de partida para dar sentido as estruturas programáticas que compõem as suas lógicas de ação. É uma prática que começa contra o monopólio da informação e que vai se desdobrando através de ondas gradativas para quebrar e/ou reformular outros modelos de organização social.

Eu diria que uma das pautas mais proeminentes que demonstra como o barco dos piratas passou a navegar em águas mais profundas é a defesa pelo fim do parlamentarismo e a criação de democracias participativas que utilizem as tecnologias da informação como complemento aos processos de tomadas de decisão. Grandes tempestades à frente dos piratas.

Última pergunta. Qualquer pessoa pode acessar e ler sua Tese? Tem link?

Sim. Está no Academia.edu e pode ser acessada por este link.

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